Perto de uma montanha que se erguia entre outras em uma floresta densa, onde árvores imensas erguiam-se como guardiãs, um corpo jazia no chão coberto por uma camada de capim alto.
Ao redor, figuras sombrias e disformes vagavam, eram demônios de diferentes formas, alguns rastejavam pelo solo independente de suas aparências monstruosas, enquanto outros caminhavam eretos.
A noite caía lentamente, e foi então que a figura ali deitado abriu os olhos, arregalados e confusos. Ela ergueu o tronco, olhou ao redor e tentou compreender o que a rodeava, até que percebeu algo negro e ameaçador.
A criança, tomada pelo pavor, deitou-se de volta no chão e sentiu o corpo tremer a cada passo da criatura que se aproximava. Um desespero crescente a dominava; como poderia ter saído de seu quarto para um lugar como aquele? Nunca havia visto, mas sabia o suficiente sobre aquelas criaturas para entender o perigo.
Deitada, seu coração disparava com a incerteza de que aquele ser talvez estivesse prestes a encontrá-la. Sua respiração acelerada escapava do controle. Em seu íntimo, desejava ouvir o que acontecia ao redor, acreditando que, ao menos, isso poderia lhe dar alguma segurança. Lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto, e em silêncio, ela suplicava por socorro.
Foi então que a imagem de Mito surgiu em sua mente, e ela lembrou da última vez que o vira, segura em seus braços. O pensamento de que ele poderia estar morto intensificou ainda mais seu desespero, e seus dentes começaram a bater.
… Pare, por favor, pare.
O som dos próprios dentes que batia ecoava em seus ouvidos como o rufar de um tambor e alimentava o terror de que o inimigo já tivesse percebido sua presença e estivesse prestes a atacá-la.
Era como se cada ruído, por menor que fosse, chegasse até ela com uma clareza inusitada, mas, em seu pavor, não se deu conta de que sua audição havia se tornado mais aguçada.
Reuniu as últimas gotas de coragem e começou a se erguer lentamente, quase como uma tartaruga cautelosa, medindo cada movimento para evitar qualquer som que denunciasse sua presença. Conseguiu se ajoelhar, os olhos varrendo o ambiente ao seu redor, mas o medo intenso a fez fechar os olhos rapidamente.
O que está acontecendo com os meus olhos?
Ela abriu os olhos novamente e percebeu, assombrada, que conseguia enxergar as coisas à distância com uma nitidez impressionante. Tentava focar o que estava mais próximo e piscava várias vezes para ajustar a visão. Fracassou, deitou-se outra vez e fixou o olhar no capim ao seu redor. Lentamente, a calma voltou, e sua visão estabilizou. Então, levantou-se cautelosamente e observou novamente, e avistou as criaturas sombrias que rondavam o lugar.
O pavor cresceu enquanto pensava em uma maneira de escapar daquele cenário repleto de terror. Após longos instantes, decidiu que sua única chance era seguir em direção à floresta com árvores imensas, onde talvez pudesse se esconder.
Começou a caminhar devagar e tentava evitar chamar atenção, mas logo foi notada por um demônio rastejante, com corpo semelhante ao de uma cobra.
Sem outra escolha, correu em pânico e despertou todos os outros ao redor. Podia ouvir com clareza que ao menos dez deles estavam atrás dela. O desespero tomou conta e, acreditando que seria capturada, sua mente ficou em branco.
De repente, movida por um impulso desconhecido, suas pernas aceleraram além do que ela acreditava ser capaz. Após perceber, ela estava em cima de uma árvore, cercada por vários inimigos que tentavam escalá-la.
Eles subiam, e ela, tremia enquanto escalava mais alto. Ao alcançar o topo, a ideia de saltar para pôr fim àquilo cruzou seus pensamentos. Lágrimas corriam enquanto considerava a morte como uma alternativa preferível à captura.
Nesse instante, imagens de Mito e de sua tia lhe vieram à mente e trazia uma onda de lembranças de sua vida.
Pronta para saltar, ela hesitou, incapaz de se jogar. Foi então que o destino interveio: o galho sob seus pés cedeu. Por um instante, sentiu-se aliviada, quase grata por estar prestes a morrer sem ter sido sua escolha.
Mas o alívio se dissipou ao ver os demônios que esperava por ela lá embaixo. Ao se aproximar do chão, a certeza da morte lhe tomou, e ela pensou, sem conseguir formular nenhuma despedida.
E se eu não morrer?
Enquanto caía, o desespero tomou conta de Ui, e as lágrimas escorriam em meio ao vento que passava por seu rosto. O chão se aproximava rapidamente, mas, nesse instante de pavor absoluto, algo dentro dela despertou, um impulso, uma força que até então desconhecia. No fim, compreendeu que seu desejo de viver era mais intenso do que qualquer pensamento de desistência.
Com um último sopro de humanidade, enquanto a escuridão e o medo a rodeavam, ela fechou os olhos e gritou com toda a força que restava:
— Eu não quero morrer!!!
Após tocar o chão, os seus inimigos ao seu redor hesitaram e recuou por um instante, como se estivessem diante de algo inesperado. Para eles, a figura que acabara de cair ali não parecia mais uma simples presa. Mas ninguém estava mais surpresa do que a própria Ui.
Ela olhou para si mesma, incrédula. Aquela altura, aquela queda brutal, teria sido fatal para qualquer humano. Mas ali estava ela, de pé, com os pés firmes no chão e sem nenhum arranhão.
O que aconteceu com o meu corpo?
Os demônios, incertos, começaram a se aproximar lentamente, cada passo envolto em hesitação. Cercada por aquelas criaturas, ela sentiu o peso da própria vulnerabilidade; qualquer esperança de fuga parecia distante e improvável. O medo a paralisava, mas, no fundo de sua mente, uma lembrança surgiu, como uma chama tênue em meio à escuridão.
As palavras de Mito ecoaram em sua mente:
Ui, escuta, você não precisa aceitar tudo assim. Revide! A única forma de lidar com a violência é com mais violência. Não deixe que te vejam como uma vítima.
Na confusão de pensamentos e lembranças, uma ideia inesperada cruzou sua mente:
E se eu tivesse esmagado aqueles que me machucaram tantas vezes?
As imagens das crianças que a maltrataram surgiram em sua memória, e pela primeira vez, ao invés de sentir medo ou dor, ela sentiu uma onda estranha de poder. A possibilidade de não ser mais uma vítima começou a surgir dentro dela.
Um sorriso, frio e quase desconhecido, surgiu em seu rosto, como uma sombra de algo novo e inexplorado. No exato momento em que um dos alvos avançou para atacá-la, Ui retribuiu o ataque.
Ela ergueu a perna e desferiu um chute contra a criatura. Ela ficou paralisada por um instante e sentiu o choque de sua própria força.
Instintivamente, levou a mão ao rosto, perplexa.
Por que estou sorrindo?
Questionou-se e tentava entender a estranha sensação que a dominava. A mistura de poder e controle a fazia sentir-se viva de uma forma que jamais experimentara, mas também a assustava.
— Eu me sinto invencível!
Ao longo dos anos, ela enfrentou incontáveis, cada um derrotado com uma força que crescia nela a cada combate. Era quase uma dança sombria: os alvos eram lançados ao ar, chutados e golpeados como se fossem brinquedos, enquanto ela sorria.
Assim, começou sua nova vida, marcada pela luta e sobrevivência em um mundo onde apenas o mais forte perdurava. Alimentava-se dos demônios que derrotava e transformava-se em alguém diferente, moldada pela violência daquele lugar.
Dois anos se passaram até que, sem realmente buscar, ela encontrou o caminho de volta à sua vila. Ao chegar, não tinha certeza se desejava entrar, mas foi avistada por um humano que, sem a reconhecer, correu ao seu encontro.
Seu cabelo, antes branco, estava sujo e emaranhado, mudado pela dura vida que levou. Levada de volta, ela caminhou pelas ruas da vila sob olhares desconfiados. As pessoas não a reconheciam, e de certa forma, Ui sentiu-se aliviada com isso. Mas, no fundo, desejava que Mito, pelo menos ele, soubesse quem ela era.
Enquanto continuava andando, avistou sua tia. A mulher, ao reconhecê-la, correu em sua direção e surpreendeu Ui ao envolvê-la em um abraço cheio de lágrimas. Ai, que um dia a vira como um fardo, agora chorava em seus braços e pedia desculpas.
Ela não compreendia o motivo, mas, no fundo, aquela demonstração de afeto era tudo o que precisava após sobreviver aos dois anos de solidão. Lágrimas que ela sequer lembrava que podia derramar começaram a escorrer. Por um momento, em meio a uma vila que sempre a rejeitara, ela sentiu que alguém ali verdadeiramente se importava.
A explicação para a mudança da sua tia era simples: após a partida de Mito, o ódio e o bullying da vila voltaram-se contra ela, que tinha contato próximo com a criança amaldiçoada. Com o desaparecimento de Mito, Ai ficou sem proteção, e entendeu finalmente a dor que a sobrinha havia suportado.
Enquanto estavam juntas, sua tia perguntou sobre Mito. Ao ouvir a pergunta, Ui percebeu, com um aperto no peito, que Mito nunca havia retornado.
A ausência dele, que fora seu único protetor e primeiro amor, fez seu coração se afundar em desespero, como se todas as memórias e o vínculo que tinham fossem agora engolidos.
Aflita, ela começou a imaginar o pior e temia que algo terrível tivesse acontecido com ele. As lágrimas vieram involuntariamente, enquanto as dúvidas e o vazio que Mito deixara se intensificavam. Vendo o sofrimento da sobrinha, abraçou-a.
Não perca as esperanças, sussurrou com ternura. Acredito que ele ainda está lá fora, e um dia ele voltará para nós.
Essas palavras, mesmo que apenas uma promessa esperançosa, trouxeram a Ui um breve consolo. Era como se uma pequena chama de esperança reacendesse dentro dela, lembrando-a de que, apesar de tudo, ainda havia algo em que acreditar.
Ela foi conduzida ao escritório do líder da vila e sua identidade foi confirmada. O chefe, entretanto, disfarçou seu repúdio com uma falsa aceitação e tratou-a com aparente bondade, como se fosse sua própria filha.
Por trás do sorriso, planejava se livrar dela novamente. Mas para sua frustração, descobriu que aquela criança agora era a mais forte de todos naquela vila, intocável em poder. Assim, ele foi obrigado a conter seu plano, atormentado pela presença de alguém que não podia mais controlar até o dado momento da partida dela da vila com Izumi e companhia.