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94.31% A Crônica do Contador de Histórias / Chapter 81: LXXX. FOLES PT.7

章節 81: LXXX. FOLES PT.7

O conde Augus foi um dos primeiros a se aproximar. De perto, parecia mais baixo e mais velho; porém tinha um olhar vivaz e riu ao falar da minha música.

— E então a corda arrebentou! — disse, com gestos exagerados. — E a única coisa em que consegui pensar foi: Não, agora não! Não antes do fim! Vi o sangue na sua mão e senti um bolo no estômago. Você levantou a cabeça para nós, baixou-a para as cordas e o silêncio foi aumentando. Ai você repôs as mãos no alaúde, e só consegui pensar: Isso é que é garoto corajoso. Corajoso demais. Não sabe que não pode salvar o final de uma canção interrompida com um alaúde quebrado. Mas você conseguiu! — Soltou uma gargalhada, como se tivesse passado um trote no mundo fazendo um passo rápido de dança.

Leif, que havia parado de chorar e estava a caminho de ficar bastante embriagado, riu com o conde. Alastor não pareceu saber como interpretar o homem e ficou a observá-lo com um olhar sério.

— Você precisa tocar na minha casa um dia desses — disse Augus, e levantou rapidamente a mão. — Não falaremos disso agora e não ocuparei mais a sua noite. Mas, antes de ir embora, preciso lhe fazer uma última pergunta: quantos anos o Silver passou com os Mayr?

Não precisei pensar.

— Seis. Três anos provando seu valor, três anos treinando.

— O seis lhe parece um bom número?

Eu não sabia aonde ele queria chegar.

Talvez porque eu tenha tocado com seis cordas hoje.

— Seis não é exatamente o número da sorte — desconversei. — Se estivesse procurando um bom número, eu teria que subir para o sete. Ou descer para o três.

Augus considerou essa ponderação, batendo com o dedo no queixo.

— Tem razão. Mas seis anos com os Mayr significam que ele voltou para Aloise no sétimo ano — disse. Enfiou a mão num bolso e tirou um punhado de dinheiro, em pelo menos três moedas diferentes. Separou do bolo sete crimos e os colocou em minha mão surpresa.

— Milorde — gaguejei —, não posso aceitar seu dinheiro.

Não fora propriamente o dinheiro que me surpreendera, mas o valor.

Augus pareceu confuso.

— Ora essa, e por que não?

Fiquei meio boquiaberto e, por um raro momento, não tive palavras.

Augus deu um risinho e fechou minha mão em volta das moedas.

— Não é um prêmio por você ter tocado. Bem, é isso, porém é mais um incentivo para que continue a se exercitar, a ficar cada vez melhor. É pelo bem da música.

Encolheu os ombros e prosseguiu:

— Sabe, o loureiro precisa de chuva para crescer. Não posso fazer muita coisa quanto a isso. Mas posso impedir que essa chuva caia na cabeça de alguns músicos, não é? — indagou, deixando insinuar-se um sorriso matreiro. — Por isso Deus cuida dos loureiros e os mantém molhados. E eu cuido dos instrumentistas e os mantenho secos. E cabeças mais sábias do que a minha decidirão quando juntar os dois.

Passei um instante calado.

— Creio que o senhor talvez seja mais sábio do que se julga.

— Bem — fez ele, procurando não assumir um ar satisfeito. — Bem, não deixe que isso se espalhe, senão as pessoas começarão a esperar grandes coisas de mim.

Deu-me as costas e foi prontamente tragado pela multidão.

Guardei os sete talentos no bolso e senti um grande peso sair de meus ombros. Foi como o adiamento de uma execução. Talvez literalmente, já que eu não fazia ideia de como a Devi poderia me incentivar a quitar minha dívida. Respirei despreocupado pela primeira vez em dois meses.

Foi uma boa sensação.

Depois que Augus se foi, um dos músicos premiados veio me cumprimentar. Em seguida apareceu um agiota cealdamo, que apertou minha mão e quis me oferecer uma bebida.

Vieram então um homem da pequena nobreza, outro músico e uma bonita jovem, que julguei que talvez fosse minha Aloise, até ouvir sua voz. Era filha de um agiota local e conversamos rapidamente sobre banalidades até ela seguir seu caminho. Quase tarde demais lembrei-me de meus bons modos e beijei a sua mão, antes que se retirasse.

Passado algum tempo, todos se misturaram num borrão. Um a um, aproximaram-se para me oferecer afeição, elogios, apertos de mão, conselhos, inveja e admiração. Embora Radagon tivesse cumprido sua palavra e conseguido impedir que todos se aproximassem numa única onda, não demorou para que eu começasse a ter dificuldade de distinguir uns dos outros. E o metheglin também não estava ajudando.

Não sei ao certo quanto tempo se passou antes que eu pensasse em procurar Drazno. Depois de vasculhar o salão, cutuquei Leif com o cotovelo, fazendo-o levantar a cabeça da partida que estava jogando com Alastor, apostando gusas.

— Onde está o nosso melhor amigo? — perguntei.

Leif fitou-me com uma expressão vazia e percebi que já havia bebido demais para captar o sarcasmo.

— O Drazno — esclareci. — Onde está o Drazno?

— Caiu fora com ar desdenhoso — anunciou Alastor com um toque de belicosidade. — Assim que você terminou de tocar. Antes mesmo que recebesse a sua gaita-de-foles.

Ele sabia. Ele sabia — cantarolou Leif, radiante. — Sabia que você a ganharia e não suportou assistir.

— Parecia mal quando saiu — acrescentou Alastor com serena maldade. — Pálido e trêmulo. Como se tivesse descoberto que alguém passara a noite toda jogando urina fermentada em sua bebida.

— Talvez alguém tenha jogado — disse Leif, com uma perversidade atípica. — É o que eu faria.

— Trêmulo? — perguntei. Alastor confirmou com a cabeça.

— Trêmulo. Como se tivesse levado um soco no estômago. O Ygon lhe ofereceu o braço para ele se apoiar, na saída.

Os sintomas me soaram familiares, como o frio súbito de quando se fazem certas conexões simpáticas. Uma suspeita começou a se formar. Imaginei Drazno me ouvindo deslizar pela mais linda música que já tinha escutado e percebendo que eu estava prestes a ganhar a gaita-de-foles.

Ele não faria nada óbvio, mas talvez conseguisse encontrar um fiapo solto, ou uma lasca fina e comprida tirada da mesa. Qualquer dos dois lhe daria apenas o mais tênue elo simpático com a corda do meu alaúde: 1%, no máximo, talvez só um décimo disso.

Imaginei-o tirando calor do próprio corpo, concentrando-se, enquanto a friagem tomava conta de seus braços e pernas. Imaginei-o tremendo, ficando com a respiração arfante, até a corda finalmente arrebentar...

...E me vendo acabar a canção, apesar disso. Sorri ao pensar nisso. Era pura especulação, é claro, mas alguma coisa com certeza havia arrebentado a corda do meu alaúde, e nem por um segundo duvidei que Drazno fosse capaz de tentar uma coisa dessas. Tornei a me concentrar no Leif.

— ...Chegar para ele e dizer: sem ressentimentos por aquela vez, no Cadinho, em que você misturou os meus sais e fiquei quase cego por um dia. Não. Não mesmo, beba tudo! Ha! — riu Leif, perdido em sua fantasia de vingança.

O fluxo de pessoas a me desejarem boa sorte diminuiu um pouco: outro alaudista, o flautista premiado que eu vira no palco, um comerciante local. Um senhor muito perfumado, de cabelo comprido e oleoso e sotaque mitreziano, deu-me um tapinha nas costas e me ofereceu uma bolsinha com dinheiro, "para comprar cordas novas". Não gostei dele. Fiquei com a bolsinha.

— Por que todo mundo continua a falar disso? — perguntou-me Alastor.

— De quê?

— Metade das pessoas que se aproximam para lhe apertar a mão se desmancha em elogios sobre como foi linda a música. A outra metade mal chega a mencioná-la, e só fala de como você tocou com uma corda arrebentada. E como se mal tivessem escutado a canção.

— A primeira metade não entende nada de música — disse Leif. — Só as pessoas que levam a música a sério podem realmente apreciar o que fez hoje o nosso pequeno A'lun.

Alastor deu um grunhido pensativo.

— Quer dizer que o que você fez é difícil?

— Nunca vi ninguém tocar O sapo no telhado de sapê sem todas as cordas — Leif lhe disse.

— Bem — comentou Alas —, você fez com que parecesse fácil. E já que recobrou o juízo, deixando de lado aquela bebida iyanesa de frutas, posso lhe oferecer uma rodada de um bom smutten preto, a bebida dos reis de Cealdar?

Reconheço um elogio ao escutá-lo, mas relutei em aceitar, uma vez que mal começava a sentir minha cabeça desanuviar-se outra vez.

Por sorte, fui salvo da necessidade de dar uma desculpa pela chegada de Maria, que se aproximou para render suas homenagens. Era a encantadora harpista loura que havia posto seu talento à prova e não fora premiada. Por um momento pensei que talvez fosse ela a voz da minha Aloise, mas, depois de ouvi-la por um instante, percebi que não era possível.

Porém a moça era bonita. Mais ainda do que parecera no palco, o que nem sempre acontece. Na conversa, fiquei sabendo que era filha de um dos membros do conselho municipal de Torrente. Em contraste com a cascata de cabelos ouro-velho, o azul-claro de seu vestido era um reflexo do azul intenso de seus olhos.

Por mais encantadora que ela fosse, não pude dar-lhe a atenção que merecia. Estava aflito para sair do bar e encontrar a voz que tinha cantado a parte de Aloise comigo. Conversamos um pouco, sorrimos e nos despedimos com palavras gentis e promessas de voltar a conversar. Maria tornou a desaparecer na multidão: uma esplêndida coleção de curvas em movimentos suaves.

— O que foi essa exibição vergonhosa? — perguntou Alastor, depois que ela se afastou.

— Que exibição?

— Que exibição?! — repetiu ele, zombando do meu tom. — Será possível que você seja tão tapado? Se uma garota bonita como aquela me olhasse com um olho só do jeito que ela te olhou com os dois... agora já estaríamos num quarto, para falar com prudência.

— Ela foi amável — protestei — e nós conversamos. Ela me perguntou se eu me disporia a lhe mostrar uns dedilhados na harpa, mas faz muito tempo que não toco esse instrumento.

— E vai passar muito mais se continuar a não perceber cantadas como essa — disse Alastor com franqueza. — Ela fez tudo, só faltou abrir mais um botão para você.

Leif se inclinou e pôs a mão no meu ombro, a própria imagem do amigo apreensivo.

— Vani, tenho pensado em conversar com você justamente sobre esse problema. Se de fato você não percebeu que a moça estava interessada, talvez queira admitir a possibilidade de você ter um déficit incrível em matéria de mulheres. Talvez deva pensar no sacerdócio1.

— Vocês dois estão bêbados — retruquei, para disfarçar meu embaraço. — Por acaso notaram, pela nossa conversa, que ela é filha de um membro do conselho municipal?

— E você notou — retrucou Alas no mesmo tom — o jeito como ela o olhou?

Eu sabia ser de uma inexperiência desoladora com as mulheres, mas não queria ter que admiti-lo. Por isso, descartei o comentário dele e levantei da banqueta.

— Por alguma razão, duvido que um sarro ligeirinho atrás do bar fosse o que a Maria tinha em mente — rebati. Bebi um pouco de água e ajeitei a capa. — Agora tenho que encontrar a minha Aloise e lhe oferecer meus mais sinceros agradecimentos. Como estou?

— Que importância tem isso? — perguntou Alastor.

Leif tocou-lhe o cotovelo:

— Não está vendo? Ele vai atrás de uma caça mais perigosa do que a filha decotada de um conselheiro.

Afastei-me dos dois com um gesto de repulsa e parti para o salão apinhado.

Na verdade, não fazia a menor ideia de como encontrá-la. Uma parte romântica e tola de mim achava que eu a reconheceria no momento em que a visse. Se ela tivesse metade da luminosidade de sua voz, brilharia como uma vela num cômodo escuro.

Mas, enquanto eu pensava essas coisas, a parte mais sensata de mim sussurrava em meu outro ouvido. Não tenha esperança, dizia. Não se atreva a esperar que uma mulher possa luzir com o brilho da voz que cantou a parte de Aloise. E, embora essa voz não fosse reconfortante, eu sabia que era sensata. Aprendera a ouvi-la nas ruas de Notrean, onde ela me mantivera vivo.

Circulei pelo primeiro andar da Foles procurando sem saber a quem. Vez por outra, alguém me sorria ou acenava. Após cinco minutos, eu tinha visto todos os rostos que havia para ver e subi ao segundo andar.

Esse, na verdade, era uma galeria reformada, mas, em vez das fileiras de assentos, havia mesas em patamares ascendentes, de onde se via o nível inferior. Enquanto eu serpeava por entre as mesas em busca da minha Aloise, minha metade mais sensata continuou a murmurar: Não tenha esperança. Só ira se decepcionar. Ela não será tão bela quanto você imagina e você ficará desolado.

Quando terminei de vasculhar o segundo andar, um novo temor começou a surgir dentro de mim. Talvez ela tivesse ido embora enquanto eu ficara sentado no bar, embriagando-me de metheglin e de elogios.

Devia tê-la procurado de imediato, prostrando-me num dos joelhos e lhe agradecendo de todo o coração. E se ela houvesse partido? E se ninguém soubesse quem era nem para onde fora?

Senti o nervosismo na boca do estômago ao subir a escada para o andar mais alto da Foles.

Agora, veja o que a sua esperança lhe arranjou, disse a voz. Ela se foi e tudo o que lhe resta é uma fantasia brilhante e tola para atormentá-lo.

O último nível era o menor dos três, pouco mais do que uma fina meia-lua aninhada entre três paredes, muito acima do palco. Ali, as mesas e bancos eram mais espaçados e escassamente ocupados. Notei que a maioria dos ocupantes desse andar era formada por casais, e me senti uma espécie de voyeur ao passar de uma mesa para outra. 

Tentando assumir um ar indiferente, fitei os rostos dos que estavam sentados bebendo e conversando. Fui ficando mais nervoso à medida que me aproximava da última mesa. Foi impossível fazê-lo sem despertar atenção, porque ela ficava num canto. O casal sentado, uma pessoa de cabelo claro, a outra de cabelo escuro, estavam de costas para mim.

Quando me aproximei, a de cabelo louro riu e pude vislumbrar um rosto orgulhoso, de traços finos. Um homem. Voltei a atenção para a mulher de cabelo comprido e preto. Minha última esperança.

Sabia que ela seria minha Aloise.

Ao contornar o canto da mesa, vi o rosto dela. Ou melhor, dele. Eram ambos homens.

Minha Aloise tinha ido embora. Eu a havia perdido e, ciente disso, tive a sensação de que meu coração fora desalojado de seu lugar de repouso em meu peito e despencara por minhas profundezas até um ponto próximo dos meus pés.

Os dois olharam para cima e o louro sorriu para mim.

— Olhe, Thony, o jovem alaudista de seis cordas veio nos cumprimentar — disse, examinando-me de alto a baixo. — Você é bonito. Quer juntar-se a nós e tomar uma bebida?

— Não — murmurei, sem jeito. — Eu só estava procurando uma pessoa.

— Bem, pois você a encontrou — retrucou ele com desenvoltura, tocando em meu braço. — Meu nome é Fallov e este aqui é o Thony. Venha tomar uma bebida. Prometo não deixar o Thony tentar levá-lo para casa. Ele tem uma queda terrível por músicos.

Murmurei uma desculpa e me despedi, aflito demais para me preocupar em saber se tinha ou não feito papel de idiota.

Quando voltava para a escada, desolado, meu eu sensato aproveitou a oportunidade para me passar uma descompostura. É nisso que dá a esperança, disse. Não presta. Mesmo assim, é melhor você tê-la perdido. Ela nunca poderia ficar à altura de sua voz. Daquela voz límpida e terrível como prata derretida, como o luar sobre as pedras do rio, como uma pluma roçando seus lábios.

Encaminhei-me para a escada, olhos grudados no chão, por medo de que alguém tentasse puxar conversa.

E então ouvi uma voz, uma voz como prata líquida, como um beijo em meus ouvidos. Levantando a cabeça, senti meu coração animar-se e soube que era a minha Aloise. Olhei para cima, vi-a e só consegui pensar: linda!

Linda.

  1. sacerdócio;
    1. O ofício, o ministério do sacerdote.
    2. Dignidade e funções dos sacerdotes.

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