«Nova Dallas»•«São Preto»•«José Framergard»•«Flamingos»•«Santa Lianna»•«Don Jonas»•«Jhonsey»
As patas dançantes da aranha continuam seu som sobre o vítreo quando Élton desce os degraus da sala de força. Embora sua cintura porte uma lanterna, ele não julga necessário usá-la, dado o fato de feixes de luzes do mundo exterior invadirem por janelas, frestas e outros lugares provenientes da construção do mundo de cima. Ele fecha o pequeno portão e caminha pelo centro da estação passando entre várias frestas de luz provindos das janelas atrás de enormes e extensas teias de aranha.
Próximo à plataforma de embarque, Élton segue rente à faixa amarela mal iluminada à procura da locomotiva estacionada. Prosseguindo, ele conclui ser impossível não ser aquela a localização da locomotiva. Indeciso, Élton puxa sua lanterna da cintura e move a chave para on. Em seguida, os eventos seguintes acabam deixando-o ainda mais confuso.
Após acender a lanterna, Élton observa que o longo do raio de extensão de luz emitida pela lanterna está vermelho. Confuso, dá alguns tapinhas na lanterna na tentativa de fazer a luz voltar ao normal. É claro que aquele defeito nunca lhe acontecera antes, ou pelo menos, não com ele. Apesar do brilho avermelhado, a lanterna ainda não perde sua principal função. Élton aponta o aparelho para além dos trilhos, até onde o túnel começa, mas nada de locomotiva. A cabine não está em lugar algum, é como se o trem tivesse ido em frente e deixado o maquinista na estação. Por um instante, passa pela cabeça de Élton a possibilidade de não ter puxado direito o freio e, por isso, ao sair, a locomotiva pode ter seguido seu fluxo até o túnel, depois seguido em frente em seu declínio.
Ainda incrédulo, o chefe da manutenção anda até o extremo da plataforma, início do túnel sentido Jhonsey e aponta a lanterna para o abismo. Tudo que o feixe brilhante vermelho alumia são apenas os três trilhos habituais, as tubulações ao redor do túnel e mais nada. Ele sabe que as luzes dos túneis estão todas apagadas, logo, as chances da ver a locomotiva dependendo do comprimento do túnel em linha reta até a curva são de descida, é 9 em cada 10. Élton se desencosta do muro na plataforma que marca o início do túnel, e aponta a sua lanterna para além da passarela do outro lado. O vermelho revela apenas alguns bancos de ferro bem enferrujados, uma espécie de painel que deveria ser o mapa metropolitano naquela época, cestos de lixo em pontos estratégicos e até algumas locomotivas abandonadas do outro lado, dispostas em antigos terminais da estação. Esta última ele se recorda de ter visto algo a respeito em outra revista cultural.
Para piorar a situação, ao atravessar novamente a plataforma, Élton ouve uma estática em seu rádio de bolso, ainda que este esteja aparentemente desligado. A estática parece cobrir uma grave voz masculina ao fundo, que, por sua vez, reverbera alguma fala como se lesse algo de modo autômato.
… as noites de São Preto em açoites.
Cheio de gente, mas ...levam a nada.
No caminho, ele apalpa seu pequeno rádio de bolso e passa os dedos pela caixa, certificando a pressão do som sobre os dedos, comprovando que o som vem do aparelho. Élton segue relutante, pensando nas esquisitices relatadas pelo chefe da manutenção geral da linha vermelha, aparecendo em algum jornal da manhã nalguma emissora. Talvez a história do contar a verdade nem sempre fosse o caminho mais certo a ser seguido. Com a situação atual, preocupar centenas de pessoas em busca de notícias de seus entes queridos com uma história alucinante de um funcionário que teve que roubar um dos trens parados a quase uma década em um dos terminais de Sandor Allulasu porque o farol de sua lanterna estava de uma cor diferente e sua locomotiva havia sumido. Talvez fosse o estopim para um novo mistério.
"O LADRÃO DE LOCOMOTIVAS!
Se você tem um trem na sua garagem, cuidado!"
A ideia lhe soa estupidamente ridícula. Com certeza além de ser demitido do cargo, certamente fariam chacotas dele.
Inhores não sei se é feitiço ou jogada….
Élton decide averiguar antes de tomar qualquer decisão precipitada. Ele volta até o túnel no outro extremo para olhar e após não achar o que procura, retorna sentido as catracas, refazendo seu caminho para a sala de força. Passo a passo, Élton banha a escuridão ao redor com a iluminação vermelha. O piso carcomido não parece tão desgastado agora pelo tempo. Ao certo, se nem lembra, a decomposição de uma borracha daquelas é estimulado ao mínimo de 600 anos e a julgar pelo fato da estação não ter nem 200, a hipótese de deterioração do material está fora de cogitação.
Do meu coração, … coice.
Em direção à sala de força, Élton nota uma intensificação na cor vermelha de sua lanterna. Olhando para cima, em volta do pilar central, as luzes das aberturas para o mundo superior também estão totalmente avermelhadas, mais do que o brilho da própria lanterna. Élton está totalmente confuso e tampouco sabe o porquê ou o que provocara isso, mas tudo que sua lógica diz neste momento é que a locomotiva sumiu, as luzes avermelharam, tudo quando ele abaixou a bendita alavanca de força.
Mas ... efeito manada,
Compassadamente, a atmosfera se torna estranhamente mais pesada. O chiado ao fundo do rádio de bolso está insuportável e quase encobre a voz grave que parece estar tentando cantar uma música melancólica e muito antiga. "Conflito de ondas? Bah!" Isso é quase frequente. Ao menos em um túnel onde a probabilidade de sinal for zero, tem a mesma chance em relação a conflitos geostáticos que alguém em uma aeronave em seu ponto mais alto. Mas o que falar do estranho brilho das coisas ali embaixo?
No meu corpo...
No meu corpo...
No meu corpo...
No meu corpo...
Agora, a melancólica cantoria se assemelha a um disco riscado. Uma repetição intermitente começa no rádio sem nenhum sentido além da forte estática, gerando inconstâncias no volume desproporcionalmente. Após abrir novamente o portão da sala de força, a estranha voz, com uma melodia bem esquisita, destoa ainda na mesma repetição, porém agora misturada a outra melodia que assomou o rádio de forma brusca. Élton jamais faria ideia de qual música seria essa, além do fato de pertencer a uma natureza clássica. Andante Cantable não é uma relíquia muito apreciada nas mais badaladas de 2016. Mas há uns ou outros que possuem algum gosto mais antiquado...
No meu corpo...
O café da manhã do Nando
No meu corpo...
Esqueci o café da manhã dele
No meu corpo...
Dá o café pra ele
Café da manhã...
Café da manhã...
No meu corpo...
A voz grave e a voz mais delgada se atropelam, mas não se misturam. Uma fala em tom apavorante enquanto a mais grave prossegue em repetição enquanto a Andante Cantable é tocada ao fundo. Assustado, Élton sobe os degraus para a sala de força, infestando seu interior com a luz vermelha. Os painéis carregados de luzeiros apagados e cabos de alta tensão igualmente desligados ao longo dos resistores nas paredes. Para um lugar que até instantes atrás era cheio de iluminação e alguma graciosidade para eletricistas e aventureiros de plantão, agora parece um ótimo local para trabalho de caças fantasmas. A estática aumenta seu ritmo e cobre quase totalmente as outras vozes no rádio, perdendo apenas para a febril voz do homem pedindo "café da manhã" ao fundo — Café da manhã de Nando... — e algum resquício da estranha melodia mais marcante das ruas de Moscow em 1871. A música vira um arco apontado para o coração depois de algum tempo. Talvez Nara tivesse alguma razão a respeito da reverberação da música por um certo tempo. Longe de qualquer tipo de irritação. Não que estivesse irritada demais ao ponto de vomitar sangue devido a uma sequência melódica repetitiva no pequeno smartphone de Artur virado para cima sobre a mesa de sua escrivaninha em seu pequeno local reservado, como escritório. Nada disso! Apenas o fato de o ouvinte ouvir tanto aquilo que enfim cedesse à sua investida. Qual como alguém resiste às investidas do amigo ou amiga do namorado, ou namorada.
"Sim, concordo com você, Nara"
Alguém que resiste tanto à tentação de fazer algo escondido. Algo que é tão vergonhoso em sua forma consciente. Um tabu? Um estilo ou música que dê certo não expressa muito gosto, mas no fim... no fim a coisa pareça boa, ótima, tão boa que chega a ser viciante.
Assim também o é para Élton. Ele gosta. Ele finalmente gosta, mas por um instante seus pensamentos retornam à superfície das águas da consciência...
"Quem raios é Artur? Quem diabos é Nara? Eu não tenho nenhum filho chamado Nando! Que merda é essa que está acontecendo?"
"Não importa. Se não entendeu...
Ele entendeu..."
As ondas do subconsciente tornam a seguir a melodia. Apenas a melodia. Não existe nada além disso, ou do Élton que procura a alavanca que liga a energia da estação. O que transpira desespero pelas axilas por dentro do macacão e a testa pinga em suor absoluto de medo. Apenas segue o ritmo até o fim...
TRASH!
Élton quebra o rádio. Por um ínfimo momento, percebe que esteve prestes a fazer alguma besteira. Sentir-se como recém-desperto de um sonho. Olha da esquerda para a direita na escuridão da sala. A lanterna continua em seu vermelho vivo, mas nada a mais que isso. O rádio recém-açoitado no chão canta em voz mecânica baixíssima antes de morrer:
No meu corpo...
No meu corpo velho, sob efeito da morte...
Uma quietude sepulcral torna a reinar na estação. "A aranha". Virando de costas, ele aponta a lanterna para cima, em direção à lâmpada. O brilho vermelho penetra as trevas até o teto, alumiando o sujo prato abaixo da lâmpada morta. Resquícios de insetos são refletidos em sombras no decorrer do teto, inclusive o corpo do aracnídeo.
"Ah, lá está ela... morta?"
Élton esbarra as costas em um painel, ele se vira e vê em frente à caixa de força central. Ele se depara com a alavanca que deu início a tudo aquilo, mas para ao ver uma mão segurando a trave da alavanca ainda para baixo, no off. A mão provém de um corpo caído ao pé do painel, circundado de cabos de força. Um passo em frente fê-lo parar de pronto e concluir uma coisa completamente bizarra. O macacão vermelho com a corda cinza e verde amarelada na altura do ombro, o rádio e a lanterna, além do molho de chaves pendurados ao redor da cintura do chefe de manutenção geral da estação... com um pouco de coragem para virar o corpo, encontraria o mesmo brasão que carrega no peito. Élton está diante de uma cópia de si, porém, aparentemente morta ou apenas dormindo. Ele se volta para si e olha para suas próprias mãos, depois para o corpo e começa a ter arrepios. Élton se aproxima. Como um prenúncio do que está por vir, volta para seu corpo novamente e prossegue em direção a ele. Qual como um sonho, ou pesadelo, achegando-se ao corpo, não chega a tocá-lo, pois antes que fizesse isso, algo enorme o agarra no escuro quando a grave voz no rádio quebrado chia novamente.
Contemplem os passos sombrios, de Geloema, do perdido sorriso...