Arrastei-me descalço no dia seguinte, sem capa e com ideias sinistras sobre minha vida.
A novidade de bancar o herói desapareceu depressa, à luz da minha situação. Eu tinha uma muda esfarrapada de roupas. Minhas queimaduras por exposição ao calor intenso não tinham gravidade, mas doíam sem parar. Eu não tinha dinheiro para comprar analgésicos nem roupas novas. Mascava a casca amarga do salgueiro, e amargo se encontrava meu estado de espírito.
Minha pobreza pendia do meu pescoço como uma pedra pesada. Em nenhum momento anterior eu tivera mais consciência da diferença entre mim e os outros estudantes. Todos os que frequentavam a Academia tinham uma rede de segurança para apará-los na queda.
Os pais de Leif eram da nobreza aturiana. Alastor vinha de uma rica família de comerciantes no Cealdar. Quando as coisas apertavam, eles podiam tomar empréstimos com base no crédito da família ou escrever uma carta para casa.
Eu, por outro lado, não podia comprar sapatos. Só possuía uma camisa. Que esperança tinha de permanecer na Academia durante os anos que levaria para me tornar um arcanista pleno? Como podia ter esperança de progredir na hierarquia, sem acesso ao Arquivo?
Lá pelo meio-dia, meu mau humor havia crescido a tal ponto que discordei de Leif durante o almoço e discutimos feito um casal de velhos. Alastor não deu opinião, mantendo os olhos cuidadosamente voltados para a comida.
Por fim, numa flagrante tentativa de desfazer meu mau humor, os dois me convidaram para assistir a Três lumens por um desejo na noite seguinte, do outro lado do rio. Concordei em ir, por ter sabido que os atores encenariam a versão original de Fetami, e não uma das versões expurgadas. A peça combinava bem com meu estado de espírito, repleta de humor negro, tragédia e traição.
Depois do almoço descobri que Kelvin já tinha vendido metade de meus emissores. Como seriam os últimos emissores azuis a serem produzidos durante algum tempo, o preço foi alto e minha parte ficou um pouco acima de um crimo e meio.
Eu havia esperado que Kelvin elevasse um pouco mais o preço, o que me deixou com o orgulho meio ferido, mas não estava em condições de recusar cavalo dado por causa dos dentes.
No entanto, nem isso contribuiu para melhorar meu humor. Agora eu já podia comprar sapatos e uma capa de segunda mão. Se trabalhasse feito um burro de carga no restante do período letivo, talvez conseguisse ganhar o bastante para pagar os juros a Devi e também a taxa escolar.
Essa ideia não me trouxe alegria. Mais do que nunca, tive consciência de como era frágil a minha situação. Eu estava separado do desastre por um fio de cabelo.
Meu estado de ânimo entrou numa espiral descendente e resolvi matar a aula de Simpatia Avançada e atravessar o rio para ir a Torrente. A ideia de ver Alys era a única coisa com potencial para me animar um pouco. Eu ainda precisava lhe explicar por que tinha faltado a nosso almoço.
A caminho da Foles, comprei um par de botas de cano curto, boas para caminhar e suficientemente quentes para os meses de inverno que vinham chegando. Isso quase tornou a esvaziar minha bolsa. Mal-humorado, contei minhas moedas ao sair da loja do sapateiro: três iyanes e um ocro de ferro. Eu já tivera mais dinheiro quando vivia nas ruas de Notrean...
— Hoje você chegou na hora certa — disse Droch quando me aproximei da Foles. — Temos uma pessoa à sua espera.
Senti um sorriso bobo espalhar-se em meu rosto e lhe dei um tapinha no ombro ao entrar.
Em vez de Alys, avistei Faela sentada sozinha a uma mesa. Radagon estava em pé a seu lado, conversando com ela. Ao me ver chegando, fez sinal para que eu me aproximasse e voltou para seu pouso habitual no bar, batendo afetuosamente em meu ombro ao passar por mim.
Quando me viu, Faela se levantou e correu na minha direção. Por um segundo pensei que fosse atirar-se em meus braços, como num reencontro de apaixonados em alguma tragédia aturiana diversas vezes encenada. Mas ela estacou pouco antes disso, com o cabelo balançando. Estava linda como sempre, mas com uma mancha roxa escurecia uma das maçãs do rosto.
— Ah, não! — exclamei, levando a mão a meu rosto, com uma dor solidária. — Isso é da hora em que a deixei cair? Sinto muito!
Faela me olhou, incrédula, e caiu na gargalhada:
— Você está pedindo desculpas por ter me tirado de um inferno de chamas?
— Só pela parte em que desmaiei e a deixei cair. Foi pura estupidez. Esqueci de prender a respiração e engoli um pouco do ar envenenado. Você se machucou em algum outro lugar?
— Em nenhum que eu possa mostrar em público — respondeu ela com uma leve careta, deslocando os quadris de um jeito que achei sumamente perturbador.
— Nada muito sério, espero.
Faela assumiu uma expressão feroz:
— Bem, sim. Espero que você se porte melhor da próxima vez. Quando uma garota tem a vida salva, ela espera um tratamento mais delicado, de um modo geral.
— Está certo — retruquei, relaxando. — Vamos tratar esse episódio como um exercício para ganhar prática.
Houve um segundo de silêncio entre nós e o sorriso de Faela se desfez um pouco. Ela começou a me estender uma das mãos, hesitou e a deixou cair.
— Falando sério, Vanitas. Eu... Aquele foi o pior momento da minha vida inteira. Havia fogo por toda parte...
Baixou os olhos.
— Eu sabia que ia morrer. Sabia mesmo. Mas só fiquei parada lá, feito... feito um coelho assustado — disse.
Levantou a cabeça, piscando para afastar as lágrimas, e seu sorriso tornou a desabrochar, deslumbrante como sempre:
— E aí apareceu você, correndo pelo meio do fogo. Foi a coisa mais impressionante que eu já vi. Parecia... você já assistiu a Daeonica?
Confirmei com a cabeça e sorri.
— Foi como ver Targus irrompendo do inferno. Você chegou, atravessando o fogo, e tive certeza de que tudo ficaria bem — disse ela.
Deu meio passo em direção a mim e descansou uma das mãos em meu braço. Pude sentir seu calor através da camisa.
— Eu ia morrer lá... — recomeçou, mas se interrompeu, constrangida. — Agora só estou me repetindo.
Balancei a cabeça.
— Não é verdade. Eu a vi. Você estava procurando uma saída.
— Não. Só estava parada lá. Como uma daquelas meninas bobas das histórias que mamãe costumava ler para mim. Sempre as detestei. Perguntava: "Por que ela não atira a bruxa pela janela? Por que não envenena a comida do ogro?"
A essa altura Faela baixara os olhos para os pés e o cabelo caído escondia seu rosto. Sua voz foi ficando cada vez mais baixa, até mal passar de um suspiro.
— "Por que ela fica sentada, esperando que alguém a salve? Por que não salva a si mesma?"
Coloquei minha mão sobre a dela, no que torci para ser um jeito reconfortante. Ao fazê-lo, notei uma coisa. Sua mão não era a coisa frágil e delicada que eu havia esperado. Era forte e cheia de calos: mão de escultora, mão que havia conhecido horas de trabalho pesado com o martelo e o cinzel.
— Esta não é a mão de uma donzela — comentei.
Faela levantou a cabeça, com os olhos iluminados pelo marejar das lágrimas. Deu uma risada assustada, parecida com um soluço.
— Eu... o quê?
Enrubesci de embaraço ao perceber o que tinha dito, mas segui em frente:
— Esta não é a mão de uma princesa desfalecente, que fica sentada fazendo renda enquanto espera que um príncipe venha salvá-la. E a mão de uma mulher que se disporia a subir numa corda feita com seu próprio cabelo para ganhar a liberdade, ou a matar um ogro captor enquanto dormisse — afirmei, olhando-a nos olhos. — É a mão de uma mulher que teria atravessado o fogo sozinha se eu não estivesse lá. Chamuscada, talvez, mas a salvo.
Levei sua mão aos lábios e a beijei. Pareceu-me a coisa certa a fazer.
— Mesmo assim — acrescentei com um sorriso —, fico feliz por ter estado lá para ajudar. Quer dizer... como Targus?
Seu sorriso tornou a me deslumbrar.
— Como Targus, o Príncipe Encantado e Grande Valoran, todos num só — respondeu ela, rindo. Segurou minha mão. — Venha dar uma olhada. Tenho uma coisa para você.
Puxou-me de volta para a mesa a que estivera sentada e me entregou um amontoado de tecido.
— Perguntei ao Alas e ao Leif o que poderia lhe dar de presente e, de algum modo, isso pareceu apropriado... — Parou de falar, subitamente tímida.
Era uma capa. De um verde-escuro cor de floresta, tecido magnífico, corte impecável. E não fora comprada na traseira da carroça de algum revendedor. Era o tipo de roupa que eu não tinha a menor esperança de poder comprar.
— Mandei o alfaiate costurar uma porção de bolsinhos nela — disse Faela, nervosa. — O Alas e o Leif mencionaram que isso era muito importante.
— É linda — comentei.
O sorriso dela tornou a se iluminar.
— Tive de adivinhar as medidas — admitiu. — Vamos ver se serve.
Tirou a capa de minhas mãos e chegou mais perto, abrindo-a sobre meus ombros, com os braços à minha volta, num gesto muito próximo de um abraço.
Fiquei imóvel como um coelho assustado, para usar suas palavras. Faela chegou tão perto que pude sentir o calor de seu corpo e, quando se inclinou para ajeitar o caimento da capa em meus ombros, um de seus seios roçou meu braço. Continuei parado como uma estátua. Por cima do ombro de Faela vi Droch sorrir, encostado na porta, do outro lado do salão.
Faela deu um passo atrás, examinou-me com olhar crítico, tornou a se aproximar e fez um pequeno ajuste no modo como a capa ficava presa em meu peito.
— Cai bem em você — comentou. — A cor destaca os seus olhos. Não que eles precisem. São a coisa mais verde que já vi no dia de hoje. Como um pedaço de primavera.
Quando ela deu um passo atrás para admirar seu trabalho, vi uma silhueta conhecida sair da Foles pela porta da frente.
Alys.
Tive apenas um breve vislumbre de seu perfil, mas reconheci-a com a mesma certeza com que reconheceria as costas de minhas mãos. Quanto ao que ela vira e às conclusões que teria tirado, só me restava especular.
Meu primeiro impulso foi disparar porta afora atrás dela. Explicar por que havia faltado a nosso encontro dois dias antes. Dizer que sentia muito. Deixar claro que a mulher cujos braços me envolviam estava apenas me dando um presente, mais nada.
Faela alisou a capa em meus ombros e me fitou com aqueles olhos que, momentos antes, tinham se iluminado com um prenuncio de lágrimas.
— Serve perfeitamente — comentei, segurando o tecido entre os dedos e abrindo a capa de lado. — É muito mais do que eu mereço. Você não devia ter feito isso, mas obrigado.
— Eu queria lhe mostrar o quanto sou grata pelo que você fez — retrucou ela, estendendo novamente a mão para tocar meu braço. — Isso não é nada, na verdade. Se algum dia houver alguma coisa que eu possa fazer por você... Qualquer favor. Você deve dar uma passada n... — Faela se calou, olhando para mim com ar intrigado. Depois: — Você está bem?
Dei uma olhadela para a porta às suas costas. Àquela altura, Alys poderia estar em qualquer lugar.
Eu jamais conseguiria alcançá-la.
— Estou ótimo — menti.
Faela buscou uma bebida para mim e passamos algum tempo conversando sobre uma coisa e outra. Fiquei surpreso ao saber que ela passara os últimos meses trabalhando com Elohkar. Fizera umas esculturas para ele e, em troca, o mestre lhe dava umas aulas de vez em quando.
Faela revirou os olhos. Ele a acordara no meio da noite para levá-la a uma pedreira abandonada no norte da cidade. Pusera barro em seus sapatos e a fizera passar um dia inteiro andando com eles. Chegara até...
Ela enrubesceu e abanou a cabeça, interrompendo a história. Curioso, mas, sem querer constrangê-la, não insisti no assunto, e concordamos entre nós que Elohkar era mais do que meio biruta.
Durante todo esse tempo fiquei sentado de frente para a porta, na vã esperança de que Alys pudesse voltar e eu conseguisse explicar-lhe a verdade.
Faela acabou voltando para a Academia, para sua aula de Matemática Abstrata. Permaneci na Foles, consumindo aos poucos uma bebida e tentando pensar num jeito de acertar as coisas com Alys. Tive vontade de tomar uma bebedeira das boas, mas não podia me dar a esse luxo, e por isso refiz devagar meu trajeto claudicante para o outro lado do rio, enquanto o sol se punha.