Meia hora depois parei na escada diante da porta de Devi, tentando ignorar o cheiro forte de carne do açougue embaixo.
Contei o dinheiro pela terceira vez e pensei em minhas opções. Eu poderia quitar toda a minha dívida e ainda bancar o custo da matrícula, mas isso me deixaria sem um centavo. Também tinha outras dívidas a pagar e, por mais que quisesse ficar fora das amarras de Devi, não me agradava a ideia de começar o período letivo sem um tostão no bolso.
A porta se abriu de repente, assustando-me. O rosto de Devi espiou por uma fresta estreita, desconfiado, e então se iluminou com um sorriso quando me reconheceu:
— Por que está parado aí? Os cavalheiros costumam bater. — Escancarou a porta para eu entrar.
— Só estava pesando minhas alternativas — expliquei, enquanto ela trancava a porta atrás de mim. O cômodo era exatamente o mesmo de antes, só que, nesse dia, recendia a canela em vez de alfazema. — Espero que não lhe seja inconveniente se eu só lhe pagar os juros neste vencimento.
— De modo algum — foi a resposta gentil. — Gosto de pensar nisso como um investimento meu — acrescentou, apontando uma cadeira. — Ademais, isso significa que tornarei a vê-lo. Você ficaria surpreso se soubesse como são poucas as visitas que recebo.
— Provavelmente deve ser mais pela sua localização do que por sua companhia.
Ela franziu o nariz.
— Eu sei. No começo, instalei-me aqui porque era barato. Agora sinto-me obrigada a ficar, porque meus clientes aprenderam a me encontrar aqui.
Coloquei dois crimos na mesa e os empurrei para ela.
— Você se importa se eu fizer uma pergunta?
Devi me olhou com ar animado e travesso.
— É imprópria?
— Um pouquinho — admiti. — Alguém já tentou denunciá-la?
— Bem, vejamos — fez ela, inclinando-se para a frente na cadeira. — Isso pode ser interpretado de várias maneiras. — Levantou a sobrancelha sobre um dos olhos de um azul gélido. — Você está me ameaçando ou sendo curioso?
— Curioso — respondi depressa.
— Vamos fazer o seguinte — disse Devi, com um sinal para meu alaúde. — Toque uma música para mim e eu lhe conto a verdade.
Sorri e abri o estojo, tirando o alaúde.
— O que gostaria de ouvir?
Ela pensou um minuto.
— Você sabe tocar Saia da cidade, criaferro?
Toquei-a com rapidez e desenvoltura. Devi entrou no coro, entusiasmada, e no fim sorriu e bateu palmas feito uma garotinha.
O que, vendo mais de perto, acho que ela era. Na ocasião, era uma mulher mais velha, experiente e segura de si. Eu, por minha vez, ainda não chegara aos 15 anos.
— Uma vez — veio enfim a resposta quando descansei o alaúde. — Dois anos atrás um jovem cavalheiro A'lun decidiu que seria melhor me denunciar ao guarda da cidade do que pagar sua dívida.
Olhei-a e perguntei:
— E...?
— E foi só — respondeu ela, dando de ombros com descaso. — Eles vieram, fizeram perguntas e revistaram o lugar. Não acharam nada incriminador, é claro.
— É claro.
— No dia seguinte o jovem cavalheiro admitiu a verdade ao guarda. Disse ter inventado a história toda porque eu havia desdenhado de suas investidas românticas. — Devi sorriu. — O condestável não achou graça e o rapaz foi multado por caluniar uma dama da cidade.
Não pude deixar de sorrir.
— Não posso dizer que eu fique terrivelmente... — Interrompi-me, notando uma coisa pela primeira vez. Apontei para a estante de livros. — Aquele é Quarta base de toda a matéria, do Molcaph?
— Ah, é sim — respondeu ela, orgulhosa. — É novo. Uma quitação parcial — esclareceu, e fez um gesto para a estante. — Fique à vontade.
Fui até lá e tirei o livro.
— Se eu tivesse este livro para estudar, não teria errado nem uma das perguntas da prova de admissão de hoje.
— Pensei que você se saciasse com os livros do Arquivo — disse Devi, com a voz carregada de inveja.
Abanei a cabeça.
— Fui banido. Passei ao todo umas duas horas no Arquivo, metade delas sendo expulso pelas orelhas.
Devi balançou a cabeça devagar.
— Eu tinha ouvido falar nisso, mas nunca se sabe quais boatos são verdadeiros. Então estamos meio que no mesmo barco.
— Eu diria que você está em situação ligeiramente melhor — retruquei, olhando para suas prateleiras. — Você tem o Preccam ali, e a Herbórica.
Fui examinando todos os títulos à procura de alguma coisa que pudesse ter informações sobre os Mayr ou o Sombraim, mas nada me pareceu especialmente promissor. Voltei a falar:
— Você também tem Os hábitos de acasalamento do Dracus comum. Eu já tinha lido uma parte dele quando fui banido.
— Essa é a última edição — disse Devi, orgulhosa. — Tem novas gravuras e uma parte sobre os faemolite.
Deslizei os dedos pela lombada do livro, depois dei um passo atrás.
— É uma bela coleção.
— Bem — disse ela, com ar provocante. — Se você prometer que manterá as mãos limpas, pode vir ler um pouco aqui de vez em quando. Se trouxer o alaúde e tocar para mim, talvez eu até o deixe levar um ou dois volumes emprestados, desde que você os devolva pontualmente — acrescentou com um sorriso cativante. — Nós, os exilados, devemos ser unidos.
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Passei o longo trajeto de volta à Academia me perguntando se Devi tinha sido
Mas era, antes e acima de tudo, um garoto de 14 anos. Em matéria de mulheres, ficava perdido como um cordeirinho na floresta.
Encontrei Kelvin em seu gabinete entalhando runas num globo de vidro para mais uma lamparina suspensa.
Bati de leve na porta aberta. Ele levantou os olhos.
— A'lun Vanitas, você está com a aparência melhor.
Levei um momento para me lembrar de que ele estava falando de três onzenas antes, quando me banira do meu trabalho na Ficiaria por causa da intromissão de Alastor.
— Obrigado, senhor. Estou me sentindo melhor.
Ele inclinou milimetricamente a cabeça. Levei uma das mãos à minha bolsa.
— Eu gostaria de acertar minha dívida com o senhor.
Kelvin grunhiu:
— Você não me deve nada. — E tornou a baixar os olhos para a mesa e para o projeto que tinha nas mãos.
— Nesse caso, minha dívida com a oficina — insisti. — Já faz algum tempo que venho tirando proveito da sua generosidade. Quanto devo pelo material que usei durante meus estudos com o Monet?
Kelvin continuou a trabalhar.
— Um crimo, sete iyanes e três.
A exatidão do número me assustou, já que ele não tinha verificado o livro de registro no almoxarifado. Fiquei atônito ao pensar em tudo o que aquele homem com jeito de urso carregava na cabeça. Tirei da bolsa o valor mencionado por Kelvin e coloquei as moedas num canto relativamente vazio da mesa.
Kelvin olhou para elas:
— A'lun Vanitas, espero que você tenha obtido esse dinheiro de forma honrada.
Seu tom foi tão sério que tive de sorrir.
— Eu o ganhei tocando em Torrente ontem à noite.
— A música paga tão bem assim do outro lado do rio?
Contive o sorriso e dei de ombros, com ar desprendido.
— Não sei se me sairei tão bem todas as noites. Afinal, foi só minha primeira vez.
Kelvin produziu um som a meio caminho entre um ronco e uma bufada e tornou a olhar para seu trabalho.
— O orgulho do Lal Mirch está contagiando você — disse. Desenhou uma linha perfeitamente reta no vidro. — Estou certo em presumir que não vai mais passar suas noites a meu serviço?
Com susto, levei um instante para recobrar o fôlego.
— Eu... eu não gostaria... eu vim aqui conversar com o senhor sobre... sobre voltar a trabalhar na oficina. — A ideia de não trabalhar para Kelvin nem me passara pela cabeça.
— Ao que parece, a sua música dá mais lucro do que trabalhar aqui — disse ele com um olhar significativo para as moedas sobre a mesa.
— Mas eu quero trabalhar aqui! — retruquei, aflito.
O rosto de Kelvin abriu-se num grande e alvo sorriso.
— Ótimo. Eu não gostaria de perdê-lo para a outra margem do rio. A música é uma boa coisa, mas o metal dura. — Bateu com dois dedos enormes na mesa, para enfatizar a afirmação. Em seguida fez um gesto de quem me enxotasse, com a mão que segurava a lamparina inacabada. — Vá. Não se atrase para o trabalho, senão eu o deixarei polindo garrafas e triturando minério por mais um período.
Ao sair, pensei no que Kelvin tinha dito. Fora a primeira coisa que ele me dissera com a qual eu não havia concordado sinceramente.
O metal enferruja, pensei; a música dura para sempre.
O tempo acabaria provando que um de nós estava certo.
Depois de sair da Ficiaria, fui direto à Quadraria, que podia ser considerada a melhor hospedaria do lado de cá do rio. O hospedeiro era um sujeito careca e corpulento chamado Gave. Mostrei-lhe a gaita-de-foles com que fora premiado e pechinchei para lhe oferecer 15 minutos agradáveis.
O resultado final foi que, em troca de tocar três noites por onzena, eu receberia casa e comida de graça. As cozinhas da Quadraria eram notáveis, e meu cômodo, na verdade, era uma pequena suíte: quarto de dormir, quarto de vestir e sala. Era um enorme passo desde meu beliche estreito no Cercado.
Mas o melhor de tudo era que eu ganharia dois crimos de prata por mês. Uma soma quase absurda para quem tinha sido pobre por tanto tempo quanto eu. E a isso se somaria qualquer presente ou gorjeta que os fregueses ricos quisessem me dar.
Tocando ali, trabalhando na Ficiaria e tendo no horizonte um mecenas abastado, eu já não seria obrigado a viver como mendigo. Poderia comprar coisas de que precisava desesperadamente: outra muda de roupa, algumas penas e papel decentes, sapatos novos...
Se você nunca foi aflitivamente pobre, duvido que possa compreender o alívio que senti. Por meses eu havia esperado uma solução para meus problemas sabendo que qualquer pequena catástrofe poderia me destruir.
Mas agora já não precisava viver todos os dias preocupado com a taxa escolar do período seguinte nem com os juros do empréstimo da Devi. Já não corria o risco de ser forçado a abandonar a Academia.
Comi um jantar esplêndido de filé de carne de porco, salada verde e uma sopa de tomate delicadamente temperada. Também houve pêssegos e ameixas frescas e pão de trigo com manteiga cremosa e adocicada. Mesmo nem o tendo pedido, serviram-me vários copos de um excelente vinho tinto de Mitreza.
Depois recolhi-me a meus aposentos, onde dormi feito um morto, perdido na vastidão do colchão de penas de minha cama nova.
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