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63.63% Estrela Cadente / Chapter 7: Outras crenças

Capítulo 7: Outras crenças

E ao anjo da igreja que está em Pérgamo escreve: (…)

Conheço as tuas obras, e onde habitas, que é onde está o trono de Satanás; e reténs o meu nome, e não negaste a minha fé, ainda nos dias de Antipas, minha fiel testemunha, o qual foi morto entre vós, onde Satanás habita.

Mas algumas poucas coisas tenho contra ti, porque tens lá os que seguem a doutrina de Balaão, o qual ensinava Balaque a lançar tropeços diante dos filhos de Israel, para que comessem dos sacrifícios da idolatria, e fornicassem.

Assim tens também os que seguem a doutrina dos nicolaítas, o que eu odeio.

Arrepende-te, pois, quando não em breve virei a ti, e contra eles batalharei com a espada da minha boca.

Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas: Ao que vencer darei eu a comer do maná escondido, e dar-lhe-ei uma pedra branca, e na pedra um novo nome escrito, o qual ninguém conhece senão aquele que o recebe.

Apocalipse 2:12-17

- Vamos festejar! – Exclamou Ester.

Dana e um Zacarias incrivelmente dorido olharam para ela com um olhar confuso. Dana resmungou:

- Lá porque acabamos de salvar a nossa segunda igreja, não me parece que esta seja a melhor altura para isso.

- Não há melhor altura. Achas mesmo que Zacarias iria conseguir aguentar outra viagem de uma hora ou mais com as feridas que tem? Vamos ter que ficar aqui mais um bocado e vamos, mais vale divertirmo-nos enquanto recuperamos. – Zacarias concordou de imediato, sendo que Dana parecia um bocado desconfortável, o que apenas piorou quando Ester perguntou. – Sabes de algum monte com águas quente? É que senão, posso tentar encontrar alguns ramos para começar uma fogueira.

- Não, não vamos fazer isso. Estás num mundo moderno agora, por isso, se queres festejar, tem que ser na atualidade.

- O que é que tens em mente?

Ester sentia-se desorientada com o barulho e quantidade de pessoas, e ainda estava no meio da rua, mas isso não foi o suficiente. "Que roupas é que são estas?", pensou, esticando o tecido do seu top branco e apalpando o pelo do seu cachecol laranja. Todavia aquilo que a mais irritava eram as suas calças usadas, ou pelo menos, as que ela pensava serem usadas, tendo apenas uns rasgos propositados. A anja confirmara que aquelas eram roupas atuais, mas não sabia agora se era gozo, ou verdade, principalmente, quando ela não parava de tremer.

Enquanto se aproximavam dos guardas à entrada, Dana preparou-se para traduzir tudo o que fosse dito. Embora tenha sido ela quem sugerira aquele local, já que a outra opção seria ter os miúdos a dançar à volta de uma fogueira no meio da rua, ela tremia de nervosismo, imaginando as situações em que eles se iriam meter de qualquer maneira. "Porque raio teve ela que sugerir uma festa? Íamos já rapidamente para a próxima igreja e voltava logo de volta para o Céu.", pensou. Entretanto, um dos guardas dirigiu-se a Ester:

- Mostre-me a sua identificação por favor. – Quando a anja traduziu à rapariga, ela fez a única coisa que lhe fazia sentido. Pegou no objeto que demonstrava a todos, sem qualquer sombra de dúvida, quem era e qual o seu lugar na sociedade.

- Bem, aqui tem. – Afirmou mostrando a sua maça.

- Isto é suposto ser uma ameaça… ou estás-me a chantagear… Estou tão confuso. – Afirmou o guarda. – Não tens contigo a tua identificação, pois não? Então sai daqui.

Dana exasperou:

- Estou a ver que não vai dar. Pelo menos não tentaste dar-lhe uma marretada.

No entanto, antes que Dana pudesse escapar daquela situação, uma intrometida apareceu e… intrometeu-se. Com cabelo ruivo, uma tatuagem de coração na bochecha e óculos de sol, a mulher colocou a sua mão por cima do ombro de Zacarias, afirmando ao guarda:

- Não se preocupe eles estão comigo.

- E quem és tu?

A mulher retirou os óculos de sol e com um único olhar diretamente aos guardas fê-los estremecer, sendo que rapidamente se corrigiram:

- Oh, claro que podem entrar, desculpe pelo desrespeito.

Problema resolvido. Um milagre acabara de lhes abrir o caminho para a discoteca, de lhes livrar de qualquer problema. Isto é, se o guarda não tivesse tentado tirar a arma de Ester:

- É proibido entrar com armas. Vai ter que deixá-la cá fora.

Sem poder entender uma palavra do que ele dizia, a rapariga interpretou a ação dele como uma ameaça, e preparou-se para atacar. Afastou a arma da mão do guarda, e com a ponta cava da maça, atingiu o estômago dele. O guarda caiu, levando o outro a agir, que gritou:

- Não te safas com isso, menina.

No entanto, Zacarias, mesmo em má condição, apanhou-o desprevenido, acertando-lhe no nariz com a biqueira do pé.

- Contigo, nunca há tempo para descansar. – Afirmou, observando Ester, estranhamente preparada para combater.

Caminharam para dentro da discoteca, e não puderam reagir ao ambiente de outra maneira senão com as próprias mãos a segurarem nos ouvidos. Os dois jovens nem podiam acreditar na quantidade de pessoas lá, foi como se toda uma tribo se juntasse num mesmo edifício. Os encontrões contínuos, os sons dilacerantes foram mais do que suficientes para os separar, levando-os a dois cantos opostos do bar.

Zacarias esforçou-se por encontrar bancos, ou algum sítio onde se pudesse sentar, conseguindo alcançar o bar. A mulher misteriosa seguiu-o, sentando-se com ele em lugares adjacentes. A rapariga, no entanto, perdera-se num ciclo infinito de empurrões, dirigindo-se agora para o desconhecido.

Duas bebidas apareceram à frente do par, a pedido da mulher. O rapaz aceitou, cheirando a bebida e, após um gole, voltando a pô-la na mesa. Decidiu usar esta oportunidade para perguntar:

- Como é que te chamas? Gostava de poder agradecer-te, mas ainda não sei o teu nome. – A mulher pensou por um bocado. O rapaz até estava prestes a repetir a pergunta, mas ela respondeu.

- Chamo-me Madalena.

- Tu és um demónio, certo? – Zacarias foi direto. Não podia confiar nela assim tão facilmente só por ela ter ajudado. - É que acho um bocado conveniente demais teres-nos ajudado a entrar, e, bem, falares hebraico arcaico.

- Estás muito enganado. Sou completamente humana, mais do que isso até. Talvez seja por isso o teu engano. Se bem que, costumam chamar-me de anjo, és o primeiro a quem me chama demónio.

- Mais do que humana? De que maneira?

- Olha-me nos olhos e descobrirás. – Zacarias olhou intensamente para ela, curioso para descobrir o seu segredo, mas não conseguiu chegar a conclusão nenhuma. Madalena ficou surpreendida. O que quer que ela quis tentar fazer não funcionou como pensava. Assim, confusa, decidiu experimentar num homem que se sentara ao seu lado. Agarrou-lhe no ombro, obrigando-o a dar-lhe atenção, e antes que ela dissesse o que quer que seja ele implorou:

- Por favor, calque-me a cara com o seu calcanhar, grita-me os teus maiores insultos. Eu preciso de uma marca sua, uma marca de que a beleza realmente caminha neste mundo. – Madalena, ignorou-o aborrecida, deixando-o cair no chão de êxtase. Zacarias olhou para ela, meio temeroso:

- O que é que acabou de acontecer? Foste tu que fizeste isso?

- Oh, aquilo? – Pareceu que já se tinha esquecido do que acabara de acontecer. – Um ataque cardíaco. Costuma acontecer em clubes.

- A sério? – Zacarias começava a ficar seriamente preocupado. Madalena limitava-se a apreciar a situação.

- Oh, isto vai ser divertido.

Do outro lado do clube, ouviu-se uma voz robótica. Zacarias pensou "Será que era um monstro, um demónio? O que é que era realmente este edifício?", mas, ouviu-se logo depois, a batida aumentou. A música eletrónica chegara ao seu clímax, e Zacarias conseguia apenas se sentir irritado pela dificuldade me sequer ouvir Madalena. Ao contrário dele, Ester, cada vez mais perdida, não teve outra opção senão seguir o ritmo, e, antes que se apercebesse, já se mexia à batida do som.

Por um bocado, deixou-se levar pelo momento. Fechou os olhos, e lembrou-se da primeira ideia que tivera antes de ir para a discoteca, das danças à volta da fogueira. Um costume divertido, mexido e até relaxante, uma atividade perfeita para suavizar os espíritos de todos que a fazia, e unir as pessoas entre si, tornara-se ali, numa procura desenfreada por amor, por atenção, em que a única espiritualidade provinha das bebidas servidas. A maior parte das pessoas lá nem dançavam, tendo expressões vazias enquanto olhavam para os copos que eram sempre preenchidos mal acabassem. Por isso mesmo, é que ela deu tanto nas vistas, sem se apercebendo que estava sozinha a dançar de olhos fechados no meio de um espaço vazio no centro do clube. As pessoas que haviam começavam a rir-se, deixando Ester feliz, até se aperceber que se riam dela. Apontavam-lhe o dedo, chamavam-na de maluca, até o DJ falou dela, do seu microfone:

- Oh Oh Yeah, temos aqui uma dançarina. Finalmente alguém a pôr as mãos no ar quando lhe peço. Como te chamas?

Ester não entendeu nada, portanto, no seu momento de confusão decidiu pedir ajuda a Dana. Gritando por ela. O DJ continuou:

- Dana. Que nome exótico. Tenho que admitir. Nunca vi ninguém a dançar como tu, desde que vi O Livro da Selva. – A maior parte das pessoas riram-se com ele, sendo que metade nem entendeu a piada.

Quando Dana se aproximou o suficiente de Ester, ela perguntou:

- O que é que eles estão a dizer?

- Estão a dizer que danças como uma índia. – A rapariga pareceu não entender o mal. – Aqui, isso é considerado um insulto.

- Então diz-me como é que se diz isto.

Ester reuniu a sua coragem, e de tom alto de modo a que todos ouvissem, disse:

- Quem dançar melhor que eu, que nos mostre a todos.

Várias caras desinteressadas emergiram das expressões gozosas de todos os dentro da discoteca. Mas uma emergiu. Para surpresa dela, a mulher que os ajudara a entrar lá, saiu da beira de Zacarias para se juntar a ela. Mal ela se juntou, olhou para o DJ e ordenou:

- Começa a música querido. – Olhou para a rapariga. – Não te arrependas deste desafio. – Olhou para Dana. – Vê se olhas bem para mim.

- Ela acabou de te ver? – Estranhou Ester.

Madalena abanou-se, e abanou-se e… tentava dançar. Não tinha grande jeito, mas sabia que não precisava. Qualquer um que a visse, ficaria hipnotizado, até Ester, que estava ao lado dela, concentradíssima a dar piruetas e mortais, não conseguiu resistir ao charme emanando dela. Com as mulheres a rasparem as pernas entre elas, os homens de boca aberta sem conseguirem desviar o olhar, e, mesmo Dana, já ajoelhada, Madalena terminou com uma vénia, fazendo desmaiar todos os presentes, menos Zacarias, e, por pouco, Ester e Dana. A mulher sedutora olhou para ela, e com um sorriso, afirmou:

- Dançaste muito bem, apesar de te teres esforçado demais. Gostei mais de te ver antes da competição, quando vagueavas de olhos fechados. Aí verdadeiramente eras tu a dançar, como eu agora. Não interessa se os outros gostam ou não. Desculpa lá ter acabado assim, mas agora, acho que é melhor saírem.

- Já? Mas acabamos de chegar e eu ainda não tive tempo para te conhecer… - Madalena pôs os dedos nos lábios de Ester.

- É o que todos dizem do meu corpo. Agora saiam. Continuem a aventura dos vossos corações.

Dana e Zacarias começaram a sair lentamente, ainda sem saber como reagir ao sucedido. Ester no entanto, continuou a discursar com a mulher:

- Por dentro.

- O que é que foi?

- Não tive tempo para te conhecer por dentro. Tinhas razão. Deixei-me levar pela opinião dos outros, e pensei que teria que me provar certa perante eles.

- Tu és diferente. Muito diferente do que estou habituada. Devia ter percebido quando ainda estavas consciente depois da dança. Tenho que admitir que tens um grupinho muito engraçado contigo. – A mulher foi ao seu bolso das calças, retirando de lá algo que nunca de lá poderia ter saído, uma maçã. – Toma. Pode vir a ser necessário.

Ester tentou pegar na maçã, mas mal tocou nela ela dissipou-se em pequenas faíscas. Confusa, quis perguntar a Madalena o que se passara, mas ela não permitiu:

- Não te preocupes, não é nada de mau. Eu costumo trazer sempre algumas comigo. Esperemos é que nunca tenhas que usar isso. Agora, sai. O teu amigo contou-me que fizeram uma aposta com Deus. Precisam de se apressar.

Ester juntou-se ao rapaz e à anja na porta, olhando mais uma vez para trás. "Será que a vamos ver mais alguma vez?", pensaram. Dana assobiou e Acácio apareceu. O sol nascia, cobrindo os céus de um tom rosa alaranjado, mas o sono não parecia afetar os jovens. Ainda cheios de energia foram agarrados ao longo da cintura, e partiram para o próximo objetivo.

O primeiro voo já tinha sido mau o suficiente, mas o segundo nem se fala. Inicialmente, nem parecia ser muito mau. O caminho até Pérgamo era, praticamente, duas vezes mais curto, logo, o problema de aguentar com o vómito da última vez seria resolvido. E, certamente, ninguém vomitou, tendo no máximo um pequeno enjoo. Ainda assim um problema acabou por surgiu.

Zacarias ainda estava aleijado. A camisa sagrada que tinha conseguira sarar as feridas no torso, faltando pouco até ao jovem mal sentir dor. A perna, por outro lado, estava na situação contrária. A ligadura improvisada da Dana não tivera grande efeito na mordidela do demónio. As marcas ainda estavam lá e pareciam que estavam a ficar infetadas, principalmente, após o ambiente doentio da discoteca que abandonaram. Passados uns longos dez minutos, o rapaz viu-se obrigado a pedir que parassem a viagem por uns momentos para se recompor.

Zacarias pediu a Dana que pegasse nele de maneira a não sentir dor. Tal provou-se complicado, sendo que a mulher pegou nele ao colo. Voaram bem por um quarto de hora. O rapaz estava confortável e a anja um pouco desorientada. Ela na primeira viagem tinha-se enganado no caminho. Não tinha contado a ninguém, tendo que usar uma solução improvisada na altura. Quando estavam em Filadélfia, o melhor local que se poderia seguir era Laodiceia. Este local situava-se incrivelmente perto, sendo precisos apenas trinta minutos para chegar lá. No entanto, Dana nunca tivera grande sentido de direção, enganando-se imediatamente no caminho. Na altura em que reparou já era demasiado tarde e seguiu até Éfeso. Nesse local, dentre todos os possíveis caminhos, só um parecia adequado. Tinha que ir para o norte em direção a Esmirna.

Para confirmar que voava na direção certa fez uma pequena paragem. Como andava a grande velocidade e estava a pegar no rapaz de maneira desacostumada, ele escorregou-lhe dos braços. Zacarias teve um susto de morte, gritando o quão alto conseguia enquanto caia. A anja rapidamente descendeu e, a apenas dez metros do chão apanhou-o. Por baixo deles estava uma floresta e, como o jovem estava farto de tantos problemas, desenvolveu uma solução. Pediu à amada que deixasse no chão, pedindo a Ester, quando ela aterrou, que lhe encontrasse certos materiais. Ela pegou em alcaçuz, aloé e em baba de caracol. Triturou em pedacinhos as plantas juntando-as na baba de caracol. Devido ao facto de ser pegajosa, colou aquilo ao pedaço de tecido anteriormente utilizado e colocou-lhe na perna.

Aquela cura teria que servir, sendo que, pela última vez, prosseguiram a viagem. Felizmente, não ocorreu mais nenhum acidente, no entanto não chegaram ao local desejado. Dana mais uma vez enganara-se no caminho simples, passando por Esmirna e chegando agora a Pérgamo.

Pérgamo era uma cidade como qualquer outra. Não havia uma grande abundância de atrações, mas, mesmo assim, encontrar a área exata da igreja foi difícil. Os jovens aterraram na parte de trás de um restaurante, tentando ser discretos. A partir daí, os jovens decidiram procurar pelo chão e os anjos pelo ar. Passados dez minutos, Acácio afirmou ter avistado ruínas no topo de um monte afastado.

No momento em que tocaram com a sola do pé no chão à volta da igreja, um arrepio subiu-lhes pelas costas acima. Uma sensação de terror e solidão rodeou-os, como se tivessem sido atingidos por uma maldição. Ao olharem para a frente, um trono, composto por crânios, tripas e corações, apareceu-lhes. Mal o viram, o mundo à volta deles mudou. Não conseguiram fazer nada enquanto viam os companheiros a serem arrancados da realidade por forças impensáveis. A visão começava a ficar turva e, no primeiro passo que tomaram, na tentativa de salvarem os companheiros, sentiram um espinho a trespassar-lhes o torso e desamaiaram.

*

Ester abriu os olhos. Encontrava-se agora dentro de um edifício, ou, mais concretamente, dentro de um quarto fechado. Tinha as paredes amarelas, não por as terem pintado assim, mas sim devido à decadência delas. Todas podres e com manchas de humidade, combinando perfeitamente com a cama de ferro enferrujado, ao contrário dos lençóis brancos estranhamente limpos. Havia lá uma sanita pequena e enferrujada, sendo a ferrugem, felizmente, a única sujidade presente, e um lavatório de alumínio. A luz, suficiente para eliminar o local inteiro, provinha de uma janela, bloqueada por grades. No lado oposto estava uma porta de ferro, também com umas grades, muito mais pequenas, pouco abaixo do nível da cabeça dela.

A rapariga ficou, de início, extremamente interessada na sanita e no lavatório, ambos objetos que nunca vira na sua vida. Conseguiu afastar o seu sentimento de perdição, ao descarregar várias vezes a água da sanita. Depois, quando se fartou, abriu a torneira até ao máximo, impressionando-se com a rapidez da água a sair. Não demorou até à água passar da bacia e chegar ao chão. Devido à leve inclinação do quarto, a água encontrou o seu caminho para fora, atravessando por baixo da porta. Ouviu-se um suspiro e, pouco depois entrou um guarda dentro do quarto. Teve cuidado ao entrar, afastando Ester ao entrar e fechando imediatamente a porta ao passar.

O homem tinha uma pele escura, mais clara que a da rapariga, mas obviamente de origem árabe. Tinha um gorro preto, demasiado grande, elevando-se acima da cabeça, uma camisa preta a combinar, por baixo de verde-tropa com vários bolsos, para guardar objetos que a rapariga nem podia imaginar, tendo agarrado atrás uma metralhadora. Trazia vestido umas calças pretas, com uma pequena pistola colocada dentro de um coldre e calçava botas vermelhas, que se destacavam do resto da vestimenta. Vinha com uma expressão rabugenta, como se tivesse acabado de acordar, que em conjunto com o bigode farfalhudo e soneiras nos olhos, davam-lhe cara de cansaço.

Ester não tinha a mínima ideia quem podia ser aquele senhor, por isso perguntou:

- Quem és tu? – Ela arrependeu-se logo de dizer algo, já que tinha a certeza que ele não entenderia o seu hebraico, sendo que se impressionou quando ele respondeu.

- Não te interessa miúda.

- Tu sabes falar hebraico? Pensei que ninguém falava essa língua sem ser eu. – A rapariga mudou de ideias, mudando a questão. – Espera, isso não interessa. Onde é que está o Zacarias?

O homem pareceu ignorar por completo a segunda pergunta, respondendo apenas à primeira:

- Hebraico ainda é uma língua falada, a tua versão é que é dos tempos do falso profeta, logo não é qualquer um que a entende. Eu, no entanto, não sou qualquer um. Sou um janízaro e foi-me dada a maldição de aprender todas as linguagens no Inferno em troca da minha lealdade. O teu amigo não te interessa agora. Devias era estar preocupada contigo mesma.

- Falso profeta? Janízaro? E como assim aprendeste isso no Inferno? O que és tu exatamente e o que fizeste aos meus amigos?

- Achas que sou o teu criado ou alguma coisa? Já estou tão cansado e tu vens-me logo com trinta perguntas de uma vez. Olha, eu só vim aqui fechar a água. Não temos um orçamento muito grande e não podemos gastá-lo a pagar a água. Por isso, não me obrigues a voltar. Se deixares a torneira aberta, eu venho com uma atitude menos pacífica e deixar-te-ei de tal maneira que nem poderás levantar-te para a abrires. Entendeste? – O janízaro irritado, saiu o mais rápido possível, sem dar nenhuma chance de fugir à rapariga.

Ester, estando já habituada a ameaças, devido à tribo Lajita, a rival da sua, que em vez de falarem, mostravam a sua agressão através de punhos, decidiu olhar pela janela para fora. Observou a paisagem, árida com apenas uma pequena área habitada visível, e localizou o monte onde desmaiou. O trono já lá não estava, tal como quando ia a voar para lá. Ela criou a ideia de que o trono só apareceria quando dele se aproximassem e que, quando estivessem relativamente próximos dele, desmaiassem pela imensa miséria que tal exalava. Foi aí que foram apanhados pelos homens do inferno e levados para ali.

Ela ficou perdida nos pensamentos ao olhar para fora, quando ouviu um grito:

- Amuada!

A rapariga sabia que não poderia ficar mais feliz por ouvir aquela voz. Dana estava numa cela mesmo ao lado do da dela, também a olhar pela janela. A rapariga chamou-a:

- Danada! Então, tiveste a infelicidade de ficar presa à minha beira?

- Infelizmente sim, Esterco. Fui apanhada de surpresa pelo trono que nem tive tempo para reparar na seta.

- Humm. – Resmungou Ester, antes de reparar no que foi dito. - Espera aí. Seta? De que é que estás a falar?

- Ah. Não deves ter sentido. Não te preocupes, é normal para qualquer desmiolada.

- Acordaste no lado errado na cama hoje.

- Acordei no chão e agora tenho o cabelo cheio de pó. Claro que estou chateada.

- Então, voltando à seta.

- Pois. Nós fomos todos atingidos por setas dos janízaros. Tu não deves saber, mas os janízaros são miúdos cristãos que são obrigados a adotar a religião muçulmana e uma atitude assassina. Eles normalmente não vivem muito, portanto estou impressionada por ter encontrado alguns já adultos aqui.

- Houve um janízaro que entrou aqui e falou sobre um falso profeta e de que tinha estado no inferno.

- Bem, com falso profeta, suponho que quer dizer Jesus. E, por acaso não tinha dito, mas os janízaros viveram há pouco mais de uma centena de anos atrás. Por isso, são poucos aqueles que ainda sobraram. Os que tu vês aqui foram trazidos do Inferno, tendo a chance de uma vida reduzida na Terra.

- Reduzida? Como assim? Porque é que vivem menos do que o habitual?

- Porque o Diabo obviamente que não tem a habilidade de reviver ninguém. Normalmente, quando ele tenta, o resultado é aquilo a que se chama um zombie. Estariam todos podres, mal se conseguiriam mover. Neste caso, para que não calhem tão mal, Lúcifer conseguiu ressuscitar pessoas por apenas dez dias. Só Deus é que lhes conseguiria dar uma vida inteira de novo. Infelizmente, foi o suficiente para levar em frente o seu plano, conseguindo até apanhar-nos. Conseguiram fazer uma barreira nesta prisão, parecida com aquela que tu viste nas igrejas quando um anjo as protege. Eu não consigo sair daqui por muito que tente. Não vai ser fácil

- Temos que pensar em alguma coisa, não podemos ficar presas para sempre. – A rapariga começou por tentar engendrar um plano de fuga, até que se lembrou de interrogar. - Já agora, viste o Zacarias?

- Não. Mas acho que encontrei alguém melhor.

No céu era visível uma pequena mancha, parada e assustada que não se queria aproximar. Era Acácio que olhava para elas de longe, apertando as mãos na tentativa de se convencer a aproximar. Dana não queria esperar até que ele se decidisse, mas também não queria atrair atenções. Por isso gritou: "Salvem-me! Por favor, eu não quero ficar presa! Se ao menos o Acácio estivesse aqui!". Ela rapidamente recebeu um aviso de que não devia voltar a gritar, no entanto, foi o suficiente para aproximar o anjo medroso.

Acácio viu-se obrigado a descender das nuvens até à anja. Ainda aterrorizado, questionou a tremer:

- O que é… - A voz até lhe faltava. – O que queres?

- Não é óbvio? Preciso que arranjes uma maneira para eu sair daqui.

- Nã… Não sei. Pensa t… tu.

- Ai é? Não me queres ajudar agora? E, quem foi a única anja que te acompanhou? Que foi tua amiga?

- Dana… - Ester intrometeu-se. – Não o trates assim. Ele está claramente aterrorizado. Se queres que ele te ajude sê mais gentil. Senão, ele irá abandonar-nos e depois é que não saímos.

- Logo tu para dizeres isso.

- Se tu não vais ser simpática, então serei eu. Acácio, espero que me ouças, mas mesmo que não, espero que saibas que não pararei de tentar. Eu sei que não nos conhecemos bem, mas gostava de fazer um pedido. – O anjo parecia ignorá-la completamente. Durante toda aquela viagem, ele nunca os ajudou, a não ser quando Dana pedia, parecendo não querer saber do estado deles. Por isso, irritava-a um bocado que ele fosse tão persistente em ser imprestável. No entanto, pensava que conseguia convencê-lo a ser útil, caso não o metesse em perigo. Continuou:

– Tu não deves querer fazer parte disto e eu percebo a tua opinião. Eu também preferia voltar aonde pertenço, à minha tribo, … ao meu pai. – Ester estava perto de lacrimejar aqui, mas aguentou as lágrimas. Acácio pareceu começar a prestar a atenção, sendo que agora ela não poderia parar. – Eu fui obrigada a juntar-me a esta missão contra a minha vontade. Fiz um simples pedido para ver o meu pai e fui praticamente ignorada. Então, se fosse para fazer a demanda, seria da minha maneira. Por isso, fui contra Deus e cheguei até aqui sem a ajuda Dele. Tu deves-te sentir da mesma maneira. Dana obrigou-te a vir e, tal como tu disseste, se for para tu vires, é à tua maneira. Não te queres envolver em nenhuma luta, em nenhuma conversa, em nada. E, embora eu te compreenda, tenho que te pedir por ajuda. Não quero que me ajudes a mim, nem à Dana, mas a todo o mundo, porque se nós falharmos, nunca se sabe as desgraças que cairão sobre ele. Portanto, por favor. Por favor, por favor, por favor, entrega-nos o teu apoio. Usa qualquer habilidade que tenhas em nosso favor e, talvez, consigamos sair daqui, sem tu teres que te magoar.

Acácio pareceu ficar convencido com aquele discurso. Depois do que a rapariga lhe disse, era impossível ele dizer que não. Por isso, após acenar em concordância à companheira, começou a pensar. Dana ficou surpreendida com Ester, ficando de início de boca aberta. No entanto, após cinco minutos a olhar para o anjo parado no ar a deliberar um plano, já se fartara. Estava pronta para se queixar, todavia Ester adiantou-se, dizendo: "Nem te atrevas a apressá-lo. Ele precisa do seu tempo, tal como nós. Espero que estejas a engendrar uma ideia também."

Passados uns poucos segundos dela a pensar, Dana declarou a sua ideia:

- Acácio, podias usar a tua "ecolocalização" e dizer se passam guardas pela minha porta. Depois, eu tento atrai-los a entrar e, no momento em que abrirem a porta, fujo daqui para fora.

- Humm. – Ester ficou surpreendida. – Não é um mau plano. Desde que eles não saibam que és assexual, funciona bem.

- Ah, mas os únicos que a conseguem ver já estiveram no Inferno. De certeza que foram informados desse facto. – Informou Acácio.

- Então acho que terei que ser eu. – Voluntariou-se Ester.

- Ha! – Exclamou. – Tu? Nem um íman conseguirias atrair.

- Oh! Deixa-me dizer-te que sou considerada a adolescente mais bonita da minha tribo.

- Provavelmente eras a única.

A discussão continuou por mais um bocado, até que, quando se cansaram, puseram o plano em marcha. Acácio foi rápido a localizar alguém a aproximar-se, avisando Ester. Ela aproximou-se da porta, começando a atirar-se ao janízaro:

- Hey, bonitão. – Tentou dizer, da forma mais atraente possível. – Estou aqui tão solitária. Podias-me fazer companhia?

- Lamento prisioneira, só entramos aí, ou para te matar, ou para te enviar ao Diabo.

Ester estranhou que o Diabo a quisesse ver. Ela ainda não o tinha encontrado em pessoa, seria a primeira vez. Aliás, estava contente por ainda não o ter visto. Se os demónios "normais" eram assim tão nojentos e aterrorizadores, nem queria imaginar o aspeto do líder deles. Quando reparou que o janízaro começava a afastar-se, Ester abstraiu-se dos seus pensamentos e voltou à conversa fiada:

- Espera, por favor. Eu sei que é contra as regras, mas eu prometo que faria valer a pena. Eu quero que entres aqui, mas não é só para agradar a mim, era a ti principalmente. Passaste quase toda a tua vida no Inferno, nem tiveste a oportunidade de te satisfazeres, certo?

- Bem, o Inferno era muito frio, e sempre que encontrava uma alma gira ela parecia desfalecer por entre os meus dedos. Devo admitir que não era grande coisa.

- Pois… Eu irei recompensar isso tudo. Também se entrares aqui por um bocadinho, ninguém irá notar. – O janízaro pareceu interessado, mas tentava conter-se. Se alguém o encontrasse, estaria feito. Por isso, Ester insistiu. – Anda lá, se não entrares irás arrepender-te por toda a eternidade, literalmente. Irei satisfazer-te de formas que nunca sequer pensaste antes.

- Está bem, mas não me posso demorar.

O homem entrou na porta, abrindo-a de repente e tentando-a fechar lentamente para não fazer barulho. A rapariga usou essa oportunidade para dar um pontapé no homem, na tentativa de empurrar para fora, para depois fugir. Infelizmente, o janízaro era muito maior do que ela esperava. Media uns dois metros e era incrivelmente musculado. Um pontapé da miúda nos seus abdominais não conseguiu sequer o fazer mexer. Ester, por outro lado, ficou a queixar-se do pé, gritando:

- Fogo! De que é que tu és feito? És tão duro. És mais rijo do que a Montanha de Sinai.

O guarda amovível tinha uma expressão séria. Com apenas a marca da barba e do cabelo rapado, tinha a cabeça bem redonda, dando-lhe um aspeto ridículo. Deu uma pequena e breve gargalhada quando recebeu o pontapé e fechou a porta atrás dele. Sentou-se na cama da prisão, esperando pacientemente que a jovem acabasse com os queixumes. Quando parou, Ester ficou a olhar para ele, pensando no que é que o homem quereria fazer. Havia prometido a ele algo que não queria dar e tinha que pensar numa solução. Antes de ter uma ideia, o gigante disse:

- Então quando é que vais continuar com a satisfação.

- Como assim, "continuar"?

- Bem, foste muito engraçada com aquele pontapé. Podias fazer-me rir outra vez? Nunca tive a oportunidade de ouvir uma piada no Inferno. Tal como eu disse, de cada vez que encontrava alguém pareciam desfazer-se.

- Oh, interessante. Acabaste de fazer isto muito mais fácil. – Aliviou-se a rapariga. – Então, deixa-me contar-te uma história muito engraçada da última vez que fui presa.

- Esta não é a tua primeira vez?

- Claro que não. Uma mulher aventureira como eu passa por muitos perigos, sendo um deles as prisões. Apesar de que na outra era completamente diferente. Estávamos amarrados a árvores e não retidos numa sala.

Ester começou então a contar da sua memória, a altura em que foi apanhada pela tribo Lajita.

*

A jovem acordara com uma dor aguda na nuca. Tentou pôr lá a mão, para ver se estava a sangrar, mas reparou que tal não lhe era possível. Estava atada a um aglomerado de bambus por lianas nos braços e nas pernas e não se conseguia mexer. Reparou no seu amigo ao lado, parecendo estar em pior estado. Embora não estivesse muito ferido, com apenas umas pequenas pisaduras ao longo dos braços, tinha os olhos todos vermelhos, os lábios inchados e, estranhamente, um grande sorriso na cara. Parecia paranoico, observando loucamente tudo o que o rodeava, no entanto, do ponto de vista dele, estava tudo distorcido.

Zacarias começava a olhar para o mundo de forma diferente, já que agora todas as cores se mostravam e bailavam num arco-íris magistral. Os guardas que por eles passavam iam variando de aspeto. As suas mãos tornavam-se em peluche rosa, as pernas em bambu e o torso em pele de tigre. As caras deles, congeladas num sorriso eterno, em vez de assustadoras pareciam acalmar o rapaz que tivera o mundo de pernas para o ar.

Quando tentava aproximar-se de algum deles para poder admirar, mais proximamente, todos os recantos daquele paraíso onde estava, não conseguia. Viu Ester ao seu lado e vislumbrou-a como uma fada. Com asas de cristal e um vestido púrpura estaria incrível, se não fosse pela cara de urso que tinha. Zacarias estranhou a cara, ficando a observá-la. Ela perguntou-lhe:

- Estás bem Zacarias? Não te feriram? Ahh! – Ester sentiu a dor de cabeça a aumentar ao pronunciar as palavras. Não queria voltar a perder a consciência com a dor, tentando focar-se no amigo, para ver se conseguia ignorar a dor.

- Oh, urso-fada, não te preocupes comigo. Eu estou bem, bem melhor do que alguma vez estive. Consegues ver o sorriso dos homens-tigres peludos? Estão tão felizes! Dá-me vontade de sorrir também.

- Oh meu Deus. O que é que eles te fizeram? Do que é que tu estás a falar?

- Foram aquelas bagas vermelhas que me deram. Tens que experimentar urso-fada, fada-urso… fadurso. Vou-te chamar fadurso.

Ester nem queria acreditar naquilo que o rapaz lhe dizia. Ela tinha quase a certeza que foi tudo consequência das bagas alucinogénias que os índios possuíam. Normalmente era o que eles tomavam para conseguirem ver o seu Deus, pelo que o seu pai lhe contava. Ao pobre Zacarias deviam ter dado uma grande quantidade para estar assim. O rapaz continuava com os seus delírios:

- Fadurso, deixa-me sentir com as minhas próprias mãos estas belezas. A tua magia está a prender-me, liberta-me dela.

- Zacarias, eu não estou a usar nenhuma magia, e eu não sou nenhuma fadursa. Anda lá, tu reconheces-me. Sou a tua amiga Ester e também estou presa.

- Espera aí, Estrela, és mesmo tu? Transformaram-te num fadurso. Bem, foi tudo para o melhor. É que sabes…

O rapaz começou a falar numa língua que a rapariga não compreendia. Os seus delírios pareciam só aumentar, no entanto essa pronúncia pareceu chamar a atenção dos índios. Um deles aproximou-se do rapaz e começaram uma conversa. A jovem foi completamente ignorada pelo rapaz daí em diante, sendo que atenção passou para o homem. Pareciam divertidos um com o outro, compreendendo-se perfeitamente.

Ester tentou como pôde chamar a atenção do amigo, mas era inútil. O rapaz estava satisfeito ali preso na conversa, não conseguiria pedir ajuda para sair. A única alternativa que ela tinha era esperar. Ainda tentou usar o seu dom, e ver se conseguia persuadir as pessoas através dos seus demónios interiores, todavia, se não conseguisse falar com eles, de nada adiantaria. Só restava esperar, até que o destino decidisse o que lhe aconteceria.

Uma hora se passou lentamente. A rapariga, após ter pedido várias vezes, conseguiu que lhe ligassem, ou pelo menos cobrissem, a cabeça com pedaços de tecido. Estes sugaram o sangue, permitindo a Ester manter-se acordada e estável. A dor persistia, mas agora já não se tinha que preocupar por perder demasiado sangue. Embora isso estivesse resolvido, aquela hora foi martirizante, sendo que se não fossem pelos vários gritos ao longo da vila, ela teria perdido a consciência.

Vários berros de dor e brados de bravura foram emitidos de fora da tenda. Todos os índios que estavam dentro dela correram para fora, querendo ajudar, de qualquer maneira que fosse, os seus aliados. Isto deu a oportunidade de um homem já conhecido por Ester há muito tempo de os vir salvar.

O seu nome era Jatché e era alguém de grande estima para a rapariga. Fora ele que trouxera sempre o seu pai das suas jornadas de caça, de cada vez que ele adoecia. Fora ele quem ficara a tomar conta de Ester de cada vez que Tkeleh não era capaz. Ele era o guarda pessoal do rei dos Semini de Gade e destacava-se entre o resto dos habitantes devido à sua reluzente calvície. Tinha um bigode farfalhudo e uma expressão séria, apesar do seu coração amável.

*

- Então é como eu? – Perguntou o janízaro amigável.

- Sim. Suponho que têm uma certa parecença. Agora continuemos, não querias estragar a imersão na história.

- Uh uh, estou tão excitado.

*

A presença de Jatché era notada por qualquer um, tendo um pouco mais de dois metros, o que deixou a jovem a perguntar-se como é que ninguém notara nele. Mas tal dúvida era rapidamente dispensada, se tivermos em conta a habilidade de guerreiro do homem. Sempre fora o instrutor de Ester e Zacarias, nas suas aulas de Krav Maga, e sempre os instruiu com carinho. A rapariga não quereria mais ninguém para a tirar daquele sítio.

O homem ao entrar, ficou logo com um sorriso na face, abstendo-se de gritar pelo nome deles ao entrar. Estando mais perto de Zacarias na altura, decidiu retirar-lhe as cordas primeiro. Perguntou se estava tudo bem, tendo apenas vários elogios sobre os seus longos cabelos rosa. Jatché soube logo que algo não estava bem, pedindo a Ester explicações, que disse rapidamente "Foram as bagas estranhas deles. ". O homem, mal libertou o rapaz, deu a sua atenção à rapariga, perguntando-lhe:

- Estás bem, Estrela? O bambu ao qual estás presa tem algum sangue nele. É teu?

- Sim. Para me conseguirem apanhar quieta para trazer acertaram-me com uma pedra na nuca. Fiquei a sangrar por um bocado, mas, felizmente, parece que não me queriam morta. Puseram algum tecido para tapar, fez algum efeito, mas estou totalmente exausta. Não sei se me consigo mexer muito bem.

- Não te preocupes, eu consigo levar-te pelo braço. Nunca foste muito pesada, por isso é simples.

- Sim, muito obrigada, Jatché. Nem sabes a alegria que me traz ao ver-te, mas, como é que conseguiste chegar aqui sem que ninguém notasse em ti? Sem ofensa, mas és muito grande. É difícil de acreditar que não te tenham visto.

- Sim, acho que tive alguma sorte. No momento em que o teu pai ordenou a invasão a estes porcos, vim a correr o mais rápido que pude. Acho que estavam todos distraídos com os nossos guerreiros.

- Espera aí, vieram todos?

- Claro. Mal o teu pai soube que ias invadir os Lajita com Zacarias deu ordem para que viessem todos como reforços. Ele estava muito preocupado contigo. Tu sabes que não podes assim do nada decidir partir numa missão suicida. Se morresses nem quero pensar na mágoa que causarias no teu pai.

- Desculpa lá. Não vos quis preocupar assim tanto.

- Não te preocupes. Nós sabemos que é a tua maneira de seres. E, aliás, o teu pai sempre quis invadir esta tribo, só ainda não teve o incentivo certo. Já tentei várias vezes avisar-lhe do perigo iminente que corríamos se não abolíssemos a tribo. Sempre pensei que mais vale atacar do que depois me arrepender. Pelos vistos, tinhas que ser mesmo tu a motivá-lo.

- O meu pai… ele também veio?

- Espero bem que não. Eu disse-lhe para se manter na segurança da sua tenda e até deixei um homem de confiança com ele. Infelizmente, tenho receio que tal não seja suficiente. O teu pai sempre foi um homem muito persuasivo.

- Eu espero bem que não. É verdade que ele tem melhorado, mas parece que sempre que ele parece estar bem, sofre uma recaída. Nem sei se conseguiria correr o caminho até aqui.

- Duvido. Mas não te preocupes com isso agora, só me falta o nó dos teus pés e a seguir fugimos a sete pés daqui.

-Está bem. E quanto ao Zacarias, achas que ele está são o suficiente para nos seguir?

O rapaz estava nesse momento deitado no chão como uma minhoca a rastejar pela terra, com um sorriso histérico na cara. Às vezes começava a gemer, o que preocupou seriamente o homem, que respondeu a Ester:

- Eu levo-o pela mão e vejo se ele não se distrai pelo caminho. Caso seja realmente necessário, pego-vos aos dois pelos braços. – Afirmou Jatché, desatando o último nó dos tornozelos da miúda. – Estás pronta?

- Eu acho que consigo ir a andar sozinha. Leva o Zacarias que eu vou… - Ester, antes de poder sequer acabar a frase foi agarrada na cintura pelo enorme braço do instrutor, que suspirou:

- Nem sei porque é que perguntei. Zacarias, anda cá.

O jovem levantou-se imediatamente no chão, fazendo a continência para o homem. Como se estivesse pronto para a ação. Foi-lhe então informado:

- Rapaz! Presta bem atenção.

- Sim! – Afirmou, mal se conseguindo conter de excitação.

- Eu vou fugir daqui com Ester…

- Sim!

- E tu vais-me seguir. Por isso aos três, vens comigo. Um, dois, tr…

- SSIIIMMMM!!! – Zacarias gritou do fundo dos seus pulmões, correndo para fora da instalação, antes que Jatché acabasse a contagem, que em pânico clamou:

- Não! – Gritou Ester e Jatché em uníssono. - Zacarias, tu não sabes o caminho. Volta já aqui, sua peste drogada! - O instrutor foi a correr, não tendo outra escolha senão apanhar o seu aluno.

Ao saírem da tenda onde estavam presos, Ester pôde mais uma vez observar a tribo. Estava agora num estado muito mais arruinado e frenético. Haviam índios por todos os lados a gritar em conjunto dos seus demónios interiores furiosos, tentando alcançar os Semini de Gade. Estes pareciam ter-se preparado muito antecipadamente para uma batalha de grande magnitude. Traziam as suas vestes de luta que, tal como a rapariga se orgulhava, pareciam muito mais formais do que a dos índios. Vestiam pele de javali com cintos de crocodilo a prender a roupa ao corpo. Os outros, por outro lado, estavam praticamente nus, tendo várias folhas juntas, agarradas por seiva de pinheiro, com dentes de tigre a pender-lhes das orelhas. Os Semini de Gade traziam um arsenal destrutivo, sendo maioritariamente composto por lanças simples de rocha e arcos e flecha de curto alcance. Mas, aquilo que se destacava mais, eram as chamas encopadas. Antes de irem para lá, atearam chamas a raízes que depois colocaram num copo de ramos e pedra, para que demore um pouco mais a arder. Tentam adivinhar o momento certo para ateá-lo para que, depois da viagem até ali, mesmo sob o efeito do vento da velocidade a que corriam, ainda sobrassem chamas para atirar às cabanas daquela tribo. Como era tudo feito de ramos, não foi difícil espalhar o fogo pela tribo toda.

Com aquele cenário quase infernal, era fácil perder de vista Zacarias. Ainda por cima quando vários índios tentavam obstruir o caminho. O rapaz conseguia-se esgueirar por entre eles com uma agilidade nunca vista dele, Jatché, por outro lado, não teve a mesma sorte. Tentou lutar contra três oponentes, só com uma mão. Isso só se tornava mais difícil com Ester a tentar soltar-se do braço dele, afirmando querer contribuir na luta. O homem teve que largá-la, fazendo-a embater no chão, o que só a deixou ainda mais irritada.

Um dos índios usou um martelo de pedra, balançando-o verticalmente contra a cabeça do homem. Ele desviou-se facilmente, dando apenas um leve passo para a direita. Rodopiou esse pé e, com algum lance, deu um murro finalizador na cara do oponente. Ao verem o companheiro caído no chão, os outros dois índios, avançaram com os seus punhos. Quando um direcionou o punho contra a cara do homem, ele pegou-lhe no braço e, com outra mão na anca dele, atirou-o contra o outro índio. Sem chances de se desviar, o outro inimigo levou com o corpo do aliado no peito, tombando em conjunto com ele.

Jatché, após ter tratado dos índios, esperou encontrar Ester ao seu lado, mas ela já lá não estava. A rapariga, mal teve a chance de se levantar, foi a correr atrás de Zacarias. Sabia que se continuasse com o instrutor perdê-lo-ia de vista e não podia deixá-lo desaparecer. Ela sentia-se responsável por tê-lo trazido consigo e não poderia aguentar se algo de mal lhe acontecesse.

Seguiu o amigo, tentando evitar o máximo de confrontos que conseguisse, sem perder tempo com quem quer que se metesse à frente. Conseguiu finalmente acompanhá-lo quando o encontrou parado como que maravilhado por alguma coisa. Sem prestar atenção ao que a rodeava, apanhou o amigo, segurando-o nos ombros:

- Finalmente, consegui-te apanhar! Zacarias, tens que acordar dessa tua loucura por que estás a passar. Se não sairmos daqui rapidamente seremos apanhados pelo fogo. Segue-me, vamos fugir por aqui… AHH! – Gritou aterrorizada.

À sua frente estava agora o elefante branco tão prezado pelos índios. Todo embelezado com várias penas de pavão à volta da cabeça. Vestia várias peles, quer de gato selvagem, de javali e até alguns galhos, formando uma espécie de ninho nas suas costas. A rapariga achava-o horrendo, mas Zacarias parecia adorá-lo. Ajoelhou-se como se estivesse sob a presença de um Deus, proferindo várias palavras irreconhecíveis para a rapariga.

Antes que pudessem ficar mais tempo a olhar para o animal, vários índios apareceram por trás deles e do elefante. Ao focarem a sua atenção nos jovens, gritaram:

- Aquela rapariga não adorou o nosso deus. Matem-na!!

*

Do lado de fora da cela de Ester, ouviam-se uns gritos a aproximarem-se:

- Onde raio é que está o Banik?

O janízaro pareceu ficar com cara de preocupado, o que fez com que a rapariga parasse a história e perguntasse:

- Estão a chamar por ti?

- Sim. Não é suposto ficar ausente por tanto tempo. Acho que agora deveria ser o jantar na nossa cantina. Devem ter reparado na minha ausência. Logo agora que a história ia ficar emocionante. – Lamentou-se o gigante.

- Então o teu nome é Banik?

- Não exatamente. É mais Bani Kinir, mas tratam-me todos por Banik.

- É um prazer conhecer-te Banik. O meu nome é Ester Sera, mas podes tratar-me por Estrela.

- Está bem, Estrela. Da próxima vez podes contar-me a história até ao fim?

- Se tivermos tempo, claro. Mas não acho que vou ficar aqui por muito tempo.

- Vais sair? Precisas de ajuda? Adorava ajudar uma conhecida!

- Acho que somos amigos agora.

- Amigos?! A sério? – Banik pareceu ter um sonho realizado. Tendo passado tanto tempo no Inferno e com pessoas tão más, nunca pôde ter uma verdadeira amizade. Cometeu o erro de ter morto por diversão algumas pessoas na sua vida. Após ter tido o castigo merecido após a morte, mudou de desejo e procurou outra maneira de encontrar diversão. Aquela amizade com Ester seria o seu primeiro passo para se conformar. – Nunca tive um amigo antes. – Ouviu-se outro grito da cantina. - É melhor ir indo. Até depois do jantar. Venho logo a correr para aqui quando puder.

O gigante inofensivo ficou todo animado com aquela notícia. Nem queria acreditar que tinha uma amiga. No entanto questionava-se sobre o outro prisioneiro. "Será que aquele demónio assassino também pode ser um amigo?"


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