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68.18% A Crônica do Contador de Histórias / Chapter 58: LVII. COMPARSA

章 58: LVII. COMPARSA

Livros.

Sem janelas que deixassem entrar a luz do sol, o Acervo era de uma escuridão profunda, a não ser pela luz suave de minha vela. Estendendo-se pelas trevas havia prateleiras e mais prateleiras de livros. Mais livros do que eu conseguiria olhar se levasse um dia inteiro. Mais livros do que poderia ler em toda a minha vida.

O ar era frio e seco. Recendia a couro envelhecido, pergaminho e segredos esquecidos. Matutei em vão, perguntando a mim mesmo como eles mantinham o ar tão fresco num prédio sem janelas.

Com a mão em concha à frente da vela, fui percorrendo meu caminho bruxuleante por entre as prateleiras, saboreando o momento, absorvendo tudo. As sombras executavam uma dança louca no teto, conforme a chama da vela se deslocava de um lado para outro.

A essa altura o efeito da balruta havia passado por completo. Minhas costas latejavam e minhas ideias pareciam chumbo, como se eu estivesse com febre alta ou tivesse levado uma pancada forte na cabeça.

Eu sabia que não estaria em condições de fazer leituras demoradas, mas não consegui convencer-me a ir embora tão depressa. Não depois de tudo por que passara para chegar ali.

Perambulei a esmo por talvez uns 15 minutos, explorando. Descobri várias salinhas de pedra, com pesadas portas e mesas de madeira. Obviamente, eram concebidas como locais em que pequenos grupos pudessem reunir-se e conversar sem perturbar o silêncio perfeito do Arquivo.

Encontrei escadas que desciam e subiam. O Arquivo tinha seis andares, mas eu não sabia que se estendia também para um subterrâneo. Até onde desceria? Quantas dezenas de milhares de livros estariam esperando sob meus pés?

Mal posso descrever como era reconfortante aquela escuridão fresca e silenciosa. Senti-me perfeitamente feliz, perdido entre os livros intermináveis. Trazia uma sensação de segurança saber que as respostas para todas as minhas perguntas encontravam-se ali, à minha espera, em algum lugar.

Foi por mero acaso que topei com a porta das quatro entradas.

Era de um pedaço sólido de pedra cinzenta, da mesma cor das paredes circundantes. O umbral tinha 20 centímetros de largura, também cinzento e também feito de uma única peça inteiriça de pedra. A porta e o umbral tinham encaixes tão justos que seria impossível enfiar um alfinete em suas frestas.

Sem dobradiças.

Sem maçaneta.

Sem janela ou painel de correr.

Sua única característica eram quatro chapas duras de cobre. Ficavam grudadas na lâmina da porta, que se nivelava com a frente da moldura, a qual era nivelada com a parede ao redor. Podia-se passar a mão de um lado ao outro da porta praticamente sem notar qualquer divisão.

Apesar dessas ausências notáveis, aquela vastidão de pedra cinzenta era sem dúvida uma porta. Cada chapa de cobre tinha um furo no centro e, mesmo não sendo do formato convencional, certamente se tratava de fechaduras. Lá estava ela, imóvel como uma montanha, serena e indiferente como o mar num dia sem vento.

Não era uma porta para ser aberta. Era uma porta para permanecer fechada.

No centro dela, entre as chapas imaculadas de cobre, se via uma palavra gravada na pedra, em baixo-relevo: VALARNITAS.

Havia na Academia outras portas fechadas, locais em que coisas perigosas eram guardadas, onde dormiam segredos antigos e esquecidos, silenciosos e escondidos. Portas cuja abertura era proibida. Portas cujas soleiras ninguém cruzava, trancadas por segurança ou porque suas chaves tinham sido destruídas ou perdidas.

Mas todas se apequenavam se comparadas à porta das quatro entradas. Pus a palma da mão em sua superfície fria e lisa e empurrei, na vã esperança de que ela pudesse abrir-se ao meu toque. Mas era sólida e imóvel como um monólito cinzento. Tentei espiar pelas fechaduras nas chapas de cobre, mas não pude ver nada além da luz de minha vela.

Tamanha foi minha vontade de entrar que cheguei a saboreá-la. Provavelmente um componente perverso da minha personalidade transpareceu no fato de, apesar de estar finalmente dentro do Arquivo, cercado por segredos infindáveis, eu ter-me sentido atraído pela única porta fechada que encontrei.

Talvez seja da natureza humana procurar coisas ocultas.

Talvez fosse apenas a minha natureza.

Nesse momento vi a luz vermelha e estável de um candeeiro de simpatia aproximar-se por entre as estantes. Era o primeiro sinal que eu via de qualquer outro estudante no Arquivo. Dei um passo atrás e aguardei, pensando em perguntar a quem aparecesse o que havia por trás daquela porta, o que significava valarnitas.

A luz vermelha aumentou e vi dois escribas dobrarem uma esquina. Eles estacaram; depois um disparou até onde eu estava e me arrancou a vela, derramando cera quente na minha mão ao apagá-a. Sua expressão não poderia ter revelado um horror maior se ele tivesse me encontrado carregando uma cabeça recém-decepada.

— Que está fazendo com uma chama acesa aqui? — perguntou-me, no sussurro mais alto que eu já tinha escutado. Baixou ainda mais a voz e sacudiu a vela já apagada diante de mim. — Pelo corpo carbonizado de Deus, o que há com você?

Esfreguei a cera quente no dorso da mão, tentando raciocinar com clareza em meio às brumas da dor e do esgotamento. É claro, pensei, recordando o sorriso de Drazno ao enfiar a vela na minha mão e me empurrar às pressas pela porta. Nosso segredinho. É claro. Eu deveria ter sabido.

Um dos escribas me conduziu para fora do Acervo, enquanto o outro correu para chamar Mestre Loran. Quando chegamos à antecâmara, Drazno conseguiu mostrar um ar confuso e assustado. Exagerou na interpretação, mas ela foi convincente o bastante para o escriba que me acompanhava. 

— O que ele está fazendo aqui? — indagou.

— Nós o encontramos perambulando — explicou o escriba. — Com uma vela.

— O quê? — exclamou Drazno, com a expressão perfeitamente horrorizada. — Bem, eu não o deixei entrar — disse, abrindo um dos livros de registro. — Olhe. Veja você mesmo. 

Antes que alguém pudesse dizer mais alguma coisa, Loran irrompeu cômodo adentro. Sua expressão, normalmente plácida, mostrava-se feroz e dura.

Comecei a suar frio e pensei no que Preccam escrevera em sua Teofania: "Há três coisas que todo homem sábio deve temer: o mar durante a tormenta, as noites sem luar e a ira de um homem gentil."

Loran avultou sobre a escrivaninha da entrada. 

— Explique-se — exigiu do escriba mais próximo. Sua voz era um nó de fúria.

— O Mikael e eu vimos uma luz bruxuleante no Acervo e fomos verificar se alguém estava tendo dificuldades com a lamparina. Encontramos esse menino perto da escada sudeste com isto. — Levantou a vela. Sua mão tremeu levemente sob o olhar enfurecido de Loran.

O Arquivista-Mor virou-se para a escrivaninha à qual se sentava Drazno.

— Como aconteceu isso, A'scor?

Drazno levantou as mãos, com ar desamparado.

— Ele chegou aqui mais cedo e eu não quis deixá-lo entrar, porque seu nome não estava no livro. Discutimos um pouco, e a Faela esteve aqui durante a maior parte da discussão — afirmou, e olhou para mim. — Acabei dizendo que ele tinha de ir embora. Ele deve ter entrado de mansinho quando fui à sala dos fundos buscar mais tinta — acrescentou; depois encolheu os ombros. — Ou talvez tenha-se esgueirado para dentro, passando pela escrivaninha dos Tomos.

Fiquei imóvel, estupefato. A pequena parte do meu cérebro que não fora derrubada pelo cansaço estava preocupada com a dor lancinante em minhas costas.

— Isso... isso não é verdade — desmenti-o, olhando para Loran. — Ele me deixou entrar. Mandou a Faela embora e me deixou entrar.

— O quê? — exclamou Drazno, boquiaberto e momentaneamente sem fala. Por mais que não gostasse dele, tive de reconhecer seu mérito por um desempenho magistral. — E por que, em nome de Deus, eu faria isso?

— Porque eu o envergonhei diante da Faela — respondi. — E ele também me vendeu a vela — acrescentei, dirigindo-me a Loran. Abanei a cabeça, na tentativa de desanuviá-la. — Não, ele me deu a vela.

Drazno fez uma expressão de espanto e disse, rindo:

— Olhem só para ele! O galinho de briga está bêbado, ou coisa assim.

— Acabei de ser açoitado! — protestei. Minha voz soou estrídula a meus próprios ouvidos.

— Basta! — gritou Loran, erguendo-se sobre nós como um pilar de ira.

Os escribas empalideceram ao som de sua voz.

Loran desviou o rosto de mim e fez um gesto curto e desdenhoso em direção à escrivaninha:

— O A'scor Drazno está oficialmente detido por negligência no cumprimento do dever.

— Como? — fez Drazno, cujo tom indignado não foi fingido dessa vez.

Loran o fitou com o sobrolho carregado e Drazno calou a boca. Voltando-se para mim, o Arquivista-Mor declarou:

— O A'lun Vanitas está banido do Arquivo. — Fez um gesto largo com a palma da mão.

Tentei pensar em algo que pudesse dizer em minha defesa.

— Mestre, eu não tive a intenção...

Loran virou-se para mim. Sua expressão, sempre tão calma até esse momento, estava carregada de uma raiva tão fria e terrível que sem querer dei um passo atrás.

— Intenção? Pouco me importam as suas intenções, A'lun Vanitas, equivocadas ou não. A única coisa que importa é a realidade dos seus atos. Sua mão segurou o fogo. A culpa é sua. Esta é a lição que todos os adultos devem aprender.

Baixei os olhos para os pés, tentando desesperadamente pensar em algo que pudesse dizer, alguma prova que pudesse mostrar. Meus pensamentos pesados ainda se arrastavam quando Loran se retirou da sala.

— Não vejo por que eu deva ser punido pela estupidez dele — queixou-se Drazno com os outros escribas, enquanto eu me dirigia à porta, entorpecido. Cometi o erro de me virar para olhá-lo. Sua expressão era séria, cuidadosamente controlada.

Mas os olhos se divertiam imensamente, repletos de riso.

— Francamente, garoto — disse-me —, não sei o que deu na sua cabeça. Seria de se supor que um membro do Arcano tivesse mais juízo.


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