Pareceu passar pouco tempo até Radagon levantar-se e erguer uma sobrancelha inquisitiva para mim. Fiz-lhe um sinal afirmativo e peguei o estojo do alaúde. Ele me pareceu terrivelmente surrado.
Subimos a escada.
Assim que pisei no palco, o salão baixou a voz para um murmúrio. Ao mesmo tempo, meu nervosismo me abandonou, consumido pela atenção da plateia. Comigo sempre tinha sido assim.
Fora do palco, eu me preocupava e transpirava.
No palco, ficava calmo como uma noite hibernal sem vento.
Radagon pediu que todos me considerassem um candidato à gaita-de-foles. Suas palavras surtiram um efeito tranquilizador, ritualístico. Quando ele fez sinal para mim, não houve aplausos familiares, apenas um silêncio expectante.
Num lampejo, vi-me como o público devia estar me vendo. Não finamente trajado como os outros; na verdade, apenas a um passo dos andrajos. Jovem, quase um menino. Senti sua curiosidade aproximá-los mais de mim.
Deixei-a crescer, demorando a abrir meu estojo surrado de segunda mão e a pegar meu alaúde surrado de segunda mão. Senti a atenção do público aguçar-se ante a aparência caseira que ele tinha.
Toquei baixinho alguns acordes, depois mexi nas cravelhas, afinando muito de leve o instrumento. Dedilhei mais alguns acordes suaves, testando-os, escutei e meneei a cabeça.
As luzes que iluminavam o palco deixavam o resto do salão na penumbra, do lugar em que eu estava. Ao erguer a cabeça, vi o que me pareceram ser milhares de olhos. Leif e Alastor. Radagon junto ao bar. Droch parado à porta. Senti um vago bolo no estômago ao notar Drazno me observando com toda a ameaça de um carvão em brasa.
Desviei o olhar de seu rosto e observei um homem barbudo de vermelho, o conde Augus, um casal idoso de mãos dadas, uma jovem encantadora de olhos negros...
Meu público.
Sorri para ele. O sorriso o aproximou ainda mais de mim, e comecei a cantar:
"Silêncio! Atentai! Pois, inda que muito ouvisseis,
Por canção tão doce em vão terás de esperar,
Como a Ullien mesmo coube outrora aguardar:
Obra-prima de um mestre de lidas difíceis
Sobre Silver e Aloise, que ele viria a desposar"
Deixei a onda de sussurros percorrer a plateia. Os que conheciam a canção soltaram exclamações em voz baixa, e os que não a conheciam perguntaram aos vizinhos por que todo aquele alvoroço.
Levei as mãos às cordas e tornei a lhes despertar a atenção. A sala silenciou e comecei a tocar.
A música brotou fluente de mim, com o alaúde como uma segunda voz. Movi os dedos com agilidade e o instrumento produziu também uma terceira voz. Cantei no tom orgulhoso e potente de Silver Thelliar, o maior dos Mayr. A plateia balançou-se ao som da música qual relva soprada pelo vento. Cantei como Sir Silver e senti o público começar a me amar e a me temer.
Estava tão acostumado a ensaiar a canção sozinho que quase me esqueci de duplicar o terceiro refrão. Mas me lembrei no último instante, num lampejo de suor frio. Dessa vez, ao entoá-lo, contemplei a plateia, na esperança de acabar ouvindo uma voz que respondesse à minha.
Cheguei ao fim do refrão antes da primeira estrofe de Aloise. Dedilhei com força o primeiro acorde e esperei, enquanto o som se desfazia no ar sem despertar uma voz na plateia. Fitei-a com calma, aguardando. A cada segundo, um alívio maior competia com uma decepção maior dentro de mim.
E então chegou ao palco uma voz suave como o roçar de uma pluma, cantando...
"Silver, como podias saber
Que era hora de me procurares?
Silver, que lembrança hás de ter
Dos nossos alegres vagares?
Quão bem carregaste na memória
O que se gravou para sempre
Em meu peito e minha história?"
Ela fez a parte de Aloise, eu, a de Silver.
Nos refrões, sua voz se desdobrava, emparelhada e mesclada com a minha. Parte de mim quis procurá-la na plateia, encontrar o rosto da mulher com quem eu cantava. Tentei uma vez, mas meus dedos vacilaram enquanto eu buscava o rosto capaz de combinar com a doce voz enluarada que respondia à minha. Distraído, toquei uma nota errada e houve um zumbido na música.
Um errinho. Trinquei os dentes e me concentrei em tocar. Coloquei de lado a curiosidade e baixei a cabeça para observar meus dedos, cuidando para que não escorregassem nas cordas.
E como cantamos! A voz dela era prata líquida, a minha, uma resposta em eco. Silver cantava versos sólidos e potentes, qual galhos de um carvalho antigo como a pedra; Aloise, por sua vez, era um rouxinol, movendo-se em círculos velozes em torno dos galhos orgulhosos.
Passei a ter apenas uma vaga consciência da plateia, uma vaga consciência do suor em meu corpo. Aprofundei-me a tal ponto na música que não seria capaz de dizer onde terminava ela e onde começava meu sangue.
Mas acabou por estancar. A dois versos do final da canção, deu-se o fim. Toquei o acorde inicial do verso de Silver e ouvi um som cortante, que me arrancou da música como um peixe retirado de águas profundas.
Arrebentou uma corda.
Estalou no alto do braço do alaúde e a tensão a fez açoitar o dorso de minha mão, produzindo um vivo filete de sangue.
Olhei-a, estupefato. Ela não devia ter-se rompido. Nenhuma das minhas cordas estava gasta a ponto de arrebentar. Mas acontecera e, quando as últimas notas da melodia se extinguiram no silêncio, senti a plateia começar a se agitar. A despertar do devaneio que eu trançara para ela com fios de canção.
No silêncio, senti tudo desfazer-se, o público acordando com o sonho inacabado, todo o meu trabalho desperdiçado, destruído. E, enquanto isso, ardia em mim a canção, a canção.
A canção!
Sem saber o que fazer, repus os dedos nas cordas e sondei as profundezas da minha mente. Desci a anos antes, quando minhas mãos tinham calos duros como pedra e a música brotava com a facilidade da respiração. Voltei ao tempo em que tocara para criar o som de Vento girando uma folha, num alaúde de seis cordas.
E recomecei a tocar. Lentamente, depois mais depressa, à medida que minhas mãos foram recordando. Recolhi os fios esgarçados da melodia e levei-os de volta ao que tinham sido minutos antes.
Não foi perfeito. Nenhuma canção com a complexidade de Sir Silver pode ser tocada em seis cordas, em vez de sete. Mas ela se completou e, enquanto eu tocava, a plateia suspirou, remexeu-se e, pouco a pouco, tornou a mergulhar no feitiço que eu havia tecido para ela.
Eu mal sabia onde estava o público e, passado um minuto, esqueci-o por completo. Minhas mãos dançaram, depois correram, depois se confundiram com as cordas, à medida que eu lutava para manter as duas vozes do alaúde cantando com a minha. E então, mesmo ao olhá-las, esqueci-as, esqueci tudo, menos de concluir a canção.
Veio o refrão e Aloise tornou a cantar. Para mim, ela não era uma pessoa, não era sequer uma voz, era apenas parte da canção que se inflamava em mim.
E então terminou.
Erguer a cabeça e contemplar o salão foi como romper a superfície da água em busca de ar. Voltei a mim e deparei com minha mão sangrando e meu corpo coberto de suor. Depois o término da canção me atingiu como um murro no peito, como sempre acontecia, onde e quando quer que eu a ouvisse.
Enterrei o rosto nas mãos e chorei. Não por uma corda de alaúde arrebentada e pela probabilidade do fracasso. Não pelo sangue derramado e a mão ferida. Não chorei nem mesmo pelo menino que aprendera a tocar um alaúde de seis cordas na floresta anos antes. Chorei por Sir Silver e Aloise, pelo amor perdido, reencontrado e outra vez perdido, pelo destino cruel e pela insensatez humana.
E assim, por algum tempo, perdi-me no luto e não soube de nada.
O meu luto por Silver e Aloise durou apenas alguns momentos. Consciente de que ainda estava em exibição, recompus-me e endireitei o corpo na cadeira para contemplar minha plateia. Minha plateia silenciosa.
A música tem um som diferente para quem a toca. Essa é a maldição do músico. Ainda sentado ali, o fim que eu havia improvisado começou a desaparecer de minha memória. Depois veio a dúvida.
E se não tivesse sido uma coisa tão íntegra quanto me parecera? E se meu término não houvesse transmitido a terrível tragédia da canção a ninguém senão a mim mesmo? E se minhas lágrimas não se houvessem afigurado nada além da reação envergonhada de uma criança a seu próprio fracasso?
Depois, a espera.
Ouvi o silêncio brotar deles. O público se manteve calado, tenso, rígido, como se a canção o tivesse queimado mais do que uma chama. Cada um estreitava seu eu ferido, agarrando-se à dor como se fosse algo de precioso.
Em seguida, um murmúrio de soluços liberados, escapando...
Um suspiro lacrimoso...
Um sussurro de corpos deixando lentamente a imobilidade...
E então o aplauso.
Um rugido como o lamber de chamas, como o trovão que acompanha o raio.