PICCOLO
Os próximos três anos de Treinamento contra os Androides foram um misto de maravilhas e torturas.
Maravilhas porque comecei a passar quase 24 horas do meu dia com Lettie e Naíma; e torturas porque… comecei a passar quase 24 horas do meu dia com Lettie e Naíma.
Ao aceitar a proposta de Lettie para ser o novo professor de sua Escola, mais uma parte do meu sonho se tornou realidade; uma parte que eu nem imaginava que existia, mas que estava ali, subentendida.
Se no meu sonho eu era casado com ela, tínhamos uma família e morávamos naquela casa, era óbvio que eu também trabalhasse em sua Escola de Artes Marciais. Agora fazia sentido o porquê meu gêmeo Daikon disse que estava treinando o golpe Tenkochi para surpreender a mãe numa apresentação da tal "Escola".
Lettie efetivamente fez o que eu sugeri e mandou construir mais um anexo. Observei-a dar aulas por um tempo antes dela me dar minhas próprias turmas. Ela tinha um dom nato para ensinar, mas não pude negar que eu enxergava nela alguns trejeitos e atitudes que eu mesmo fazia quando a ensinei naquele um ano de Treinamento. Esperávamos os alunos todos os dias numa entrada na lateral do salão. A maioria era crianças, as quais, por alguma razão, achavam o fato de ter um alienígena verde como professor a coisa mais legal do mundo, e chegavam todos os dias com um sorriso no rosto (na maioria das vezes, com um ou dois dentes de leite faltando na frente) e me abraçavam ao exclamarem: "Olá, Mestre Piccolo!"
Era bom.
Quando de fato comecei a ter minhas próprias turmas, foi pavoroso me acostumar ser o centro das atenções diante dos alunos devido minha introversão, sobretudo porque Lettie sugeriu que eu fosse o professor dos alunos adolescentes.
— Sabe como é — disse ela ao me persuadir. — Essa fase precisa de um pouco de disciplina à la Piccolo.
Como havíamos previsto, a adição de uma nova sala e um novo professor fez com que a quantidade de alunos também aumentasse. No entanto, tomamos cuidado para sempre deixarmos uma generosa janela de horários livres para conseguirmos treinar para a desgraça que chegaria dali três anos.
Pelo menos, meu novo ofício como professor fez com que eu me distraísse do medo e da ansiedade daquela nova ameaça contra o nosso mundo e àqueles que amo. Entretanto, o fato de eu agora estar sempre na presença de Lettie e Naíma desde manhãzinha até a noite após o jantar, indo embora apenas para dormir no Templo, não amenizava nem um pouco a voz sibilante do meu Inimigo e não apagava as imagens mórbidas que ele fazia questão de me lembrar nas horas mais inconvenientes.
Mas, também tive momentos bons. Presenciei, de camarote, minha preciosa Naíma aprender a falar e andar. Sua primeira palavra foi (pasmem) "Chi-chi". Pelo visto, era a palavra com a sonoridade mais fácil para uma bebê (ou estou apenas tentando me enganar por não ter sido "Piccolo").
Tá. Eventualmente, Naíma aprendeu a falar "Mamãe", "Gohan", "Tio Goku" e, é claro, "Piccoyo" (ela tinha dificuldades com o L do meu nome). Ainda bem, repito, AINDA BEM que ela não se dirigia a mim como "Papai", pois, afinal, vivíamos debaixo do mesmo teto de segunda a segunda das 7hs às 21hs numa estrutura e vínculo muito, muito familiar.
Tenho fortes suspeitas de que Naíma compreendeu nossa conversa particular na varanda no dia em que tomou suas vacinas e evitava me causar qualquer tipo de constrangimento. Minha menina era muito esperta.
Digo isso com confiança, pois Naíma não parava de me surpreender. A cada novo dia era como uma grande novidade para ela, com todo um mundo para descobrir ao seu redor.
Quando Naíma aprendeu a andar, não demorou muito tempo para ela mostrar suas habilidades artísticas e gostos para a dança clássica. Admito que não tive coragem de contar à Lettie o que Trunks disse a Goku, de que, em seu futuro, Naíma deixou de seguir seu sonho de bailarina para ajudar Bulma a construir a máquina do tempo.
No entanto, eu faria o possível para ela realizar seu sonho em nossa linha do tempo, e já desde cedo, ao vermos sua inclinação para o balé, eu e Lettie implementamos exercícios lúdicos e divertidos em sua rotina para garantir que Naíma crescesse com uma excelente força, equilíbrio e flexibilidade para sua futura carreira profissional. Até a ensinei a controlar seu Ki, afinal, uma bailarina também precisava ser forte para aguentar tantos movimentos complicados de dança.
Caramba, fiquei parecendo a Chi-chi! Desde quando me tornei assim?!
Enfim, falando nela e em sua família, começamos a passar muito tempo juntos, agora que eu, Lettie, Goku e Gohan precisávamos treinar com mais rigor e afinco para a chegada dos Androides.
Se não fosse por Lettie ter feito todo um trabalho de convencimento em Chi-chi sobre a importância dos treinos na época em que se tornaram melhores amigas, aposto que teríamos tido muitos problemas com a esposa do meu ex-rival.
Para a surpresa de todos, Chi-chi se mostrou receptiva com a ideia do Treinamento contra os Androides, ainda mais porque ficaria cuidando da querida e fofa sobrinha enquanto os outros saíam para treinar (e ainda ganharia uma grana por isso!).
Mas, apesar de Lettie e eu testemunharmos esta pequena evolução no casamento de Chi-chi e até uma melhora no relacionamento entre pai e filho com Goku e Gohan, não significou que deixamos de ver algumas situações bem constrangedoras.
Chi-chi claramente ressentia Goku por ele não tomar uma iniciativa de procurar um emprego e trazer sustento para casa e, por diversas vezes, ME usava como exemplo de como eu, mesmo não sendo casado com Lettie, era um digno exemplo de homem trabalhador. Suas palavras ditas em público para todos ouvirem, é claro, me faziam querer me enterrar no chão, tanta vergonha eu sentia. Eu lia que Lettie também se encabulava da mesma forma, ficando vermelha como pimentão quando sua cunhada vinha com esses comentários.
Ora, era óbvio que eu me orgulhava de ser esse tal "digno exemplo de homem trabalhador", pois só complementava minha fantasia de que eu era o marido-e-pai-não-oficial das minhas meninas. Mas, isso também me fazia lembrar com tristeza o quanto meu relacionamento com Lettie e Naíma ainda não estava do jeito que eu tanto desejava.
Contudo, certo dia, toda essa reclamação de Chi-chi chegou ao estopim, e no final, me meti numa grande enrascada, mas acabei cumprindo um desejo expresso por Lettie no dia que vacinamos Naíma.
O carro de Chi-chi havia quebrado e, como Goku não sabia bulhufas sobre estes assuntos e simplesmente não dava a mínima para tal, foi sua esposa quem ficou responsável de resolver toda aquela burocracia e chatice, o que a deixou bem nervosa.
Lettie, que também havia cumprido sua auto-sugestão e comprou um carro simples, o ofereceu emprestado para Chi-chi, mas sua obstinada e teimosa cunhada negou a oferta, alegando que ficaria no sufoco até seu marido se tocar e tomar uma atitude para ajudá-la a resolver a questão com o carro quebrado.
Eu e Lettie trocamos expressões incertas ao ouvirmos sua alegação, pois sabíamos que Goku nunca se tocaria para estes assuntos, pois sua cabeça só pensava no Treinamento e em comer.
Resultado: eles ficaram um bom tempo com o carro quebrado (foi um problema feio no motor e permaneceria eras no mecânico), e a cada dia que passava, Chi-chi ficava mais irritada e nervosa com Goku.
Então, certo entardecer, eu e Lettie voltávamos de um Treinamento pesado nas montanhas para a casa de Goku e Gohan com eles (havíamos levado Naíma, pois Chi-chi precisou fazer compras e não queria fazer sua sobrinha andar, já que o mercado mais próximo da região ficava a uma hora de caminhada). Assim que entramos na casa deles, encontramos uma Chi-chi toda suja e descabelada, sentada à mesa de jantar, cabisbaixa. Várias sacolas de compras rasgadas se espalhavam pela mesa.
De cara, Lettie e eu notamos algo de errado com Chi-chi. Seu rosto estava todo manchado por várias lágrimas derramadas. Até Naíma reparou e murmurou um tristonho "Tia Chi-chi…". Porém, Goku não percebeu nada de errado com sua esposa e começou a se despir na nossa frente.
— Chi-chi, o que houve? — perguntou Lettie.
— Ah!!! Hoje suamos muito! — cortou Goku, tirando a camiseta fedorenta e jogando na frente da mulher. — Querida, o banho já está pronto? Estou morrendo de fome! Faz um jantar caprichado, viu? Gohan, vai tomar banho comigo?
— Sim! — Gohan estava tão contente com a presença do pai, que nem prestou atenção no estado lamentável de sua mãe.
Entretanto, quase tive um treco quando Goku continuou a se despir na frente de todos despretensiosamente. Lettie foi esperta em logo perceber a ingenuidade exorbitante do irmão e cobriu os olhos da filha e os próprios. Corri para o banheiro mais próximo, peguei uma toalha de banho e cobri Goku antes que fosse tarde demais.
— Oh, obrigado, Piccolo! — Sorriu Goku, todo bobo alegre.
— Tenha mais respeito, seu imbecil! — sussurrei para ele, entredentes.
Goku ficou bem confuso com minha bronca repentina e abriu a boca para responder, contudo, foi Chi-chi quem pulou da cadeira e vociferou:
— AGORA JÁ CHEGA!!!
Fez-se silêncio. Todos a encararam.
— EU NÃO AGUENTO MAIS!!! — exclamou ela, ofegante. — GOKU, VOCÊ POR ACASO ACHA QUE SOU SUA EMPREGADA?! ACHA QUE PODE SÓ CHEGAR EM CASA E PEDIR BANHO E COMIDA COMO SE EU FOSSE UM ROBÔ SEM SENTIMENTOS???
O clima ficou pesadíssimo. Lettie olhava de um para o outro, desconfortável com aquele conflito. Gohan já tinha os olhos marejados ao testemunhar mais uma vez seus pais brigando.
— Hã? — Goku inclinou a cabeça, ainda mais confuso. — Por que está dizendo isso, Chi-chi?
— HOJE, FUI LITERALMENTE PERSEGUIDA POR UM JAVALI SELVAGEM VOLTANDO DO MERCADO!!! — rebateu ela, erguendo-se nos pés para ficar cara a cara com o marido. — E QUASE CAÍ DE UM PRECIPÍCIO!!! SABE QUANTAS PESSOAS MORREM POR ANO POR ATAQUES DE JAVALIS SELVAGENS?!?!
— E o que eu tenho a ver com isso? — perguntou Goku.
Essa não.
— O QUE VOCÊ TEM A VER COM ISSO?!?! — Chi-chi ficou roxa. — ORA, TALVEZ, SE VOCÊ PRESTASSE MAIS ATENÇÃO NO CASAL DA MONTANHA AO LADO, VERIA QUE TEM ALGO MUITO DE ERRADO COM VOCÊ! — Ela gesticulou para mim. — NEM PRECISA OLHAR PARA OS NOSSOS VIZINHOS, VEJA PICCOLO! ELE E A LETTIE NEM SÃO CASADOS E ELE DEMONSTRA MAIS CARINHO E CONSIDERAÇÃO POR ELA DO QUE VOCÊ DEMONSTRA POR MIM DESDE QUE NOS CASAMOS!!! EU SÓ ESTOU TE PEDINDO PARA VOCÊ IR À PORCARIA DAQUELE MECÂNICO E ME LEVAR PARA FAZER AS COMPRAS DA SEMANA, ISSO É PEDIR MUITO?!?!
— Ora, querida — replicou Goku —, mas, até onde sei, Piccolo também não leva minha irmã para fazer as compras. Ele também não sabe dirigir.
Chi-chi virou-se para Lettie, lívida.
— Isso é verdade?
Ao observar as duas, congelei, e um súbito frio na barriga me acometeu. Por que fiquei nervoso com aquela pergunta??
— Sim, Chi-chi… — respondeu Lettie, sem graça. — Piccolo sempre me acompanha no mercado, mas… não tem carteira de motorista.
Por apenas um milissegundo, meu olhar se encontrou com o de Lettie. Opa! Espere um pouco aí! Foi impressão minha, ou ela parecia… chateada por eu REALMENTE não ter carteira de motorista?! Eu estava louco ou a habilidade de dirigir era um atributo que mulheres de fato apreciavam em homens?!?!
Não precisei fritar meu cérebro para tentar adivinhar, pois seus sentimentos me revelaram o que eu temia.
— O QUÊ?! — Chi-chi alarmou-se com a declaração da cunhada. — Como assim, Piccolo não tem carteira de motorista?? Ah, mas isso não ficará assim! — Ela colocou as mãos na cintura. — Pois bem, então! Fui muito boazinha nesses últimos tempos, mas agora, preciso colocar algumas regras, senão as coisas não vão mais pra frente nesta casa. Goku, você está PROIBIDO de continuar seu Treinamento enquanto não tirar uma carteira de motorista e resolver o problema do nosso carro.
— C-C-COMO É QUE É?! — esganiçou ele.
— Sim, senhor! — respondeu ela, firme como uma General de Guerra. — Amanhã mesmo, você e Piccolo vão para a Autoescola na cidade fazer o curso e tirar a carteira de motorista, E NÃO ACEITO NÃO COMO RESPOSTA!
Embasbacado, encarei Lettie ao de repente me ver obrigado a fazer algo que nem ao menos fora uma ordem estrita dela. Enquanto Chi-chi e Goku ainda discutiam sobre o assunto, e Gohan e Naíma riam da situação (que se tornara cômica), me peguei olhando para Lettie por mais tempo que eu deveria, e vi nela um lampejo divertido em seu rosto e uma satisfação ao ver que eu não ia mais escapar de cumprir seu desejo de enfim tirar a bendita carteira de motorista.
Sorri internamente.
Certo. Se Lettie queria que eu fizesse aquilo, então, assim eu faria. Errei em negligenciar seu desejo por tanto tempo, afinal, não era esse o meu papel como marido-e-pai-não-oficial? Providenciar que minhas meninas se sentissem seguras e amparadas, mesmo com algo tão mundano como aprender a dirigir?
Então, conforme ordenado por Chi-chi, nos próximos dias, eu e Goku fomos até a Autoescola fazer o curso para tirar nossa carteira de motorista durante minhas folgas na Escola de Artes Marciais.
Foi uma experiência pavorosa para ambos.
Primeiro porque Lettie tirou sarro da roupa que coloquei para ir à Autoescola. Era um modelito muito estiloso que vi numa revista aleatória no banheiro da casa dela e copiei, então achei que ela iria gostar, mas não! Ao me ver vestido com uma calça jeans, uma blusa roxa por baixo, camiseta amarela por cima, boné e tênis, Lettie riu alto e alegou que eu parecia um tal de "Will Smith", personagem de um seriado de comédia chamado "Um Maluco no Pedaço" (quem raios era esse cara???). Naíma, por outro lado, gostou muito e me aplaudiu, mas, para um pai, é difícil confiar no gosto de sua filha pequena, pois crianças nessa idade tendem a amar tudo o que você faz.
O segundo motivo foi que peguei uma instrutora totalmente louca das ideias. Biruta. Insana!!! Por fora, ela era toda meiga e delicada, mas quando ligava o carro para me ensinar a dirigir, se transformava numa besta selvagem e indomável. Já Goku, teve o azar de pegar um senhor de uns duzentos anos para ser seu instrutor.
De vez em quando, Lettie, Naíma, Gohan e Chi-chi apareciam na Autoescola para gritar palavras de incentivo enquanto dirigíamos pelas pistas contornadas com cones laranjas. Confesso que eu me empertigava todo ao ver Lettie segurando Naíma no colo, as duas sorrindo e acenando com entusiasmo para mim quando eu passava por elas. Puxa, a sensação de ser amado era maravilhosa…
"Aproveite enquanto elas estão vivas," dizia meu Inimigo, e a melancolia tomava conta de mim.
Tirando estas inconveniências, alguns acidentes e explosões na pista, e uma dúzia de traumas para os nossos instrutores, Goku e eu concluímos o curso e tiramos nossas carteiras de motorista. Em comemoração, Chi-chi fez um jantar caprichado, o que deixou Goku tão feliz, que prometeu que no dia seguinte, iria até o mecânico dizer umas poucas e boas e EXIGIR que seu carro ficasse pronto logo. Sua declaração tirou um suspiro apaixonado de sua esposa.
Mais tarde, após deixar minhas meninas em casa e colocar Naíma na cama, despedi-me de Lettie para voltar ao Templo, pois teríamos aula no primeiro horário do dia seguinte. Entretanto, antes de eu levantar voo no quintal, Lettie me chamou, desceu correndo as escadas da varanda, me parou, colocou as mãos em meu peito e, bastante acanhada e enrubescida, disse:
— Q-Quero que saiba que… estou muito orgulhosa de você, e também agradecida por você… ter feito isso por mim.
Suas mãos tremiam contra o meu peito, e li o quanto seus sentimentos amorosos estavam elevadíssimos. Lettie estava tão bela, tão perfeita debaixo da luz da Lua e das estrelas, que tive que me segurar ao máximo para não tomá-la em meus braços e beijá-la até alguém dizer chega.
Mas, reprimi minhas vontades e sentimentos.
Carinhosamente, afastei suas mãos e sorri:
— Não foi nada. Agora, sempre que precisar de mim para uma emergência com o carro, basta elevar seu Ki, que venho voando para cá.
Lettie pareceu chateada por eu afastá-la, mas sorriu de volta e agradeceu de novo, despedindo-se e entrando em casa. A alegria que antes senti pela minha conquista deu lugar à mais profunda tristeza por afastar os sentimentos da mulher que amo mais uma vez, e cheguei no meu quarto no Templo com uma baita dor de cabeça. Felizmente, meu pai— digo, Kami-sama havia deixado uma jarra de Água Sagrada para mim na cabeceira da cama.
Porém, a partir dos próximos meses, minha carteira de motorista de fato veio a calhar, e muito. Não foram poucas as madrugadas que Lettie elevou seu Ki para me chamar e levarmos Naíma no hospital devido a alguma gripe que pegou dos alunos, afinal, tínhamos muitas crianças na Escola e aquele tipo de problema era comum.
Para Lettie, uma mulher com uma criança pequena e uma vida corrida, ter alguém como eu para lhe dar apoio em tarefas simples como fazer compras, resolver pequenas pendências na cidade, ou levá-las de um lugar para outro (porque estava frio e não seríamos malucos em colocar a saúde de Naíma em risco voando a centenas de metros no chão), fez com que nosso relacionamento, o qual, apesar de ainda ter seus problemas, melhorou muito.
Compreendi que, às vezes, tudo o que uma mulher quer e precisa, é se sentir segura e amparada pelo homem que convive. E, às vezes, tirar uma simples carteira de motorista já ajudava nisso.
A cada segundo, hora, dia e mês que passava, eu me surpreendia o quanto eu, Lettie e Naíma nos dávamos bem. Apesar da correria com as aulas na Escola, nossa convivência era tão pacífica e calorosa… Como um bálsamo refrescante após um dia cansativo.
Nossa rotina corria com tanta naturalidade, que parecíamos ter a habilidade de lermos os pensamentos do outro, e as coisas simplesmente… fluíam. Acredito que devo boa parte disso com a experiência que tive na "convivência familiar" com Lettie e Gohan durante nosso Treinamento contra os Saiyajins.
Naíma era a garotinha mais adorável do mundo, trazendo alegria e luz por onde quer que passava com sua vida e sorriso. Nada me deixava mais contente do que ouvi-la me chamar de "Piccoyo" com sua vozinha fina, apesar de que eu ainda preferia que fosse "Papai", mas, infelizmente, eu não tinha este luxo.
Ela e Gohan se davam maravilhosamente bem, e a presença dela era essencial para que seu primo não perdesse seu lado infantil no meio de tanto Treinamento rigoroso e pesado que fazíamos todos os dias. Conforme Gohan havia sugerido na barraca naquele dia chuvoso, anos atrás, ele realizou seu sonho de enfim ter uma priminha para brincar de explorador nas florestas ao redor de sua casa nas horas vagas. Uma pena que a parte do seu sonho, que envolvia meu casamento com Lettie, não se realizou.
Até Goku de vez em quando tirava um tempo para brincar com a sobrinha. Mas, apesar do amor que eu sentia pela minha filha, nada superava o que eu sentia pela minha doce e querida Lettie durante os três anos que passamos juntos.
Era tão maravilhoso acordar logo cedo no meu quarto no Templo e saber que dali a poucos minutos eu a veria e passaria mais um dia inteiro ao seu lado. Era tão maravilhoso ouvir sua voz na sala de aula ao lado da minha, instruindo seus alunos e se divertindo com eles. Era tão maravilhoso vê-la cozinhar algum prato diferente e ver um brilho ansioso em seu olhar enquanto aguardava minha opinião. Era tão maravilhoso dar uma pausa nas aulas no meio da tarde para treinarmos juntos num lugar ermo e matarmos a saudade dos rounds de luta que costumávamos fazer. Era tão maravilhoso jantarmos juntos, limparmos a cozinha, colocarmos Naíma para dormir e assistirmos um pouco de TV no final do dia só para relaxar antes de eu ir embora para o Templo de novo…
Era tão maravilhoso…
Mas, também era tão difícil…
Era tão difícil lembrar-me de como a desprezei quando nos conhecemos na Ilha do Mestre Kame. Era tão difícil saber o quanto a fiz sofrer no início do nosso Treinamento contra os Saiyajins. Era tão difícil quando o meu Inimigo revivia a imagem do seu corpo destroçado nas Águas Termais, cheio de machucados e hematomas causados pelas minhas mãos. Era tão difícil ver o potencial do nosso relacionamento, do nosso amor, e não poder seguir adiante. Era tão difícil ter pesadelos com Lettie e nossos filhos morrendo em meus braços e meu Inimigo rindo com desdém pelo seu triunfo. Era tão difícil ver a ameaça dos Androides se aproximando e eu treinando como um louco e me consumindo em ansiedade por não saber se conseguirei proteger minha família…
Nos últimos dias antes do prazo dado por Trunks, eu e Lettie ficamos mais unidos do que nunca. Não sei dizer o porquê ou como acontecia, mas parecia que uma força poderosa nos atraía cada vez mais, fazendo-nos querer ficar na companhia do outro toda hora. Talvez fosse devido ao medo de perdê-la, mas meus sentimentos para com Lettie estavam muito mais fortes e avassaladores.
A ponto de explodirem a qualquer momento.
E eles explodiram.
A soma de todos estes fatores culminaram no dia em que tudo mudou e desmoronou: o dia em que eu e Lettie nos beijamos pela primeira vez, e Naíma me chamou de "Papai".
Era o entardecer de 11 de maio, um dia antes da chegada dos Androides. Lettie e eu já havíamos programado férias para os nossos alunos para este período, e conversávamos à mesa de jantar, aguardando uma torta que ela fez sair do forno. Naíma, agora com cerca de quatro anos, brincava sozinha no quarto com algumas bonecas bailarinas que eu havia comprado em seu último aniversário.
Uma atmosfera tensa e carregada de preocupação rodeava Lettie e eu. Apesar de tentarmos disfarçar com a simplicidade da rotina diária, como um mero café-da-tarde à mesa, sabíamos que o perigo mortal e iminente dos Androides havia chegado.
Não importava o quanto tivéssemos treinado durante os últimos três anos.
Aquilo nos apavorava.
Afinal, quem não se apavoraria? Mais uma ameaça de nível global batia às nossas portas, e lá estávamos outra vez, nos preparando para enfrentá-la sem saber se sairíamos vivos.
— O que foi, Lettie? — perguntei, tamborilando os dedos no tampo da mesa ao vê-la ainda mais quieta do que nos últimos dias.
Silêncio.
— Não é nada… — Ela evitava o meu olhar na cadeira ao lado.
Meu coração ardia numa vontade de abraçá-la e confortá-la do que quer que pensava ou temia. Com tristeza, reprimi aquela vontade, mas me inclinei em sua direção e pedi, baixinho:
— Lettie, fala comigo.
Ela ergueu o olhar preocupado e, por fim, confessou, acanhada:
— É que… Não consegui me transformar em Super Saiyajin durante os últimos três anos de Treinamento…
— E nem Gohan. — Cruzei os braços.
— Ele é criança, Piccolo. Ainda tem muito a aprender pela frente. Mas, já eu… — Ela suspirou. — Sou uma mulher adulta e com tantas responsabilidades... Eu já deveria ter conseguido, não acha?
— É por causa daquele comentário ridículo do Vegeta? — Torci os lábios numa careta. — Ainda pensa nisso?
— Não! Juro que não é nem por isso. Mas, é que… — Ela passou as mãos pelos cabelos curtos. — Eu me esforcei tanto neste Treinamento e, mesmo assim, não consegui me transformar. É frustrante a gente se dedicar em algo e não alcançar resultado, entende?
Olhei para ela de um modo compassivo e respondi:
— Sim, entendo. Porém, pense por outro lado. Lembra que Goku disse que o gatilho para se transformar em Super Saiyajin é a ira?
— Lembro.
— Me responda: por acaso, você se irou com alguém nos últimos três anos?
— Bom… — Lettie deu um meio sorriso. — Tirando aquele aluno que nos deu um trabalhão e quase tivemos que expulsar, não.
— Pois, então! — Sorri de volta. — Aí está sua resposta. Como você quer alcançar algo que depende de um sentimento que você raramente tem?
Lettie estreitou os olhos, parecendo ponderar o assunto.
— Escuta — continuei, num tom gentil —, além de Gohan, você é a pessoa mais calma e centrada que conheço. Não adianta você forçar a tornar-se uma Super Saiyajin se ainda não chegou o momento.
— E acha que este momento vai chegar?
— Não sei. — Dei de ombros. — Já parou para pensar que a ira é um sentimento doloroso e que provavelmente você terá de passar por uma experiência ruim para virar uma Super Saiyajin?
Lettie franziu o cenho, piscando várias vezes.
— Nossa, é mesmo… E-Eu não tinha pensado nisso… Pelo que você me contou, meu irmão precisou ver Kuririn morrer impiedosamente por Freeza para conseguir se transformar, não é?
— Sim — assenti com firmeza. — Aposto que não foi nada agradável para Goku, mesmo que isso lhe tenha trazido o bônus da transformação.
— É… — Lettie suspirou, cansada. — Pensando bem, é um assunto mais complexo do que imaginei. Acho que não quero passar por um sentimento tão terrível só para conseguir ficar mais forte. Ainda mais se o alvo desse sofrimento for Naíma, Gohan, Goku, Chi-chi ou… você.
Meu coração disparou no peito quando nossos olhares se encontraram e nossos sentimentos aumentaram exponencialmente. Depressa, Lettie baixou a cabeça para mexer nas unhas, mas então, começou a fungar, baixinho.
Ela estava chorando.
Não consegui suportar mais.
— Ei, ei! — Me coloquei de joelhos à sua frente e peguei suas mãos. — O que foi?
Lettie ergueu os olhos vermelhos e inchados e então, tocou meu rosto com carinho e, num fio de voz, disse:
— Eu não quero te perder de novo.
A encarei, atônito. Foi como se um filme passasse pela minha cabeça e a vi ali, na minha frente, passando pela agressiva dor do luto após minha morte na luta contra os Saiyajins.
Completamente sozinha.
Não… Eu não poderia permitir que ela passasse por aquilo de novo. O fardo do luto era apenas meu para ser carregado. Mesmo com Naíma, Gohan, Goku e Chi-chi ao seu lado agora, eu não poderia permitir que ela sofresse a dor da perda de novo.
"Você falhará," disse meu Inimigo. "Esta luta já está perdida, e não haverá sobreviventes."
Cerrei os dentes diante aquela voz maligna e esbocei uma expressão de dor, querendo me afastar de Lettie para ela não perceber.
Mas ela percebeu.
— Piccolo… — Foi tudo o que ela disse, pegando no meu rosto de novo e não permitindo que eu me afastasse.
E foi o suficiente.
Nos olhamos face a face. Seus dedos macios contornavam o meu maxilar e, quando menos percebi, eu havia tirado a franja dos seus olhos e segurado seu rosto, acariciando sua bochecha com meu polegar. Sua pulsação acelerava contra a minha mão.
Não!
Involuntariamente nos inclinamos para ficarmos mais perto. Nossas respirações estavam trêmulas. Senti seu hálito doce e quente, convidando-me para me aproximar cada vez mais.
Pare!!!
Fechamos os olhos e tocamos as pontas dos nossos narizes. Ficamos assim por um tempo, trocando de lado, sentindo o toque da pele do outro, ofegantes e com uma angústia para não nos afastarmos.
Me recordei de tantos momentos que assisti Lettie ali, naquela cozinha, preparando algo incrível na beira da pia ou do fogão. Quantas vezes quis chegar por trás dela, abraçá-la com carinho, beijando lentamente seu pescoço e subindo até sua bochecha, queixo e por fim, sua boca?
PARE, PICCOLO!!!
Mas, eu não parei, e nem ela. De repente, estremecemos quando nossos lábios roçaram, e então, os selamos, em um beijo longo, profundo e macio. Não consegui mais ficar parado. Passei minhas mãos pelas suas costas até segurar sua nuca. Lettie abraçou meu pescoço, apertado, e abrimos nossas bocas para sentimos mais o gosto do outro; cada toque e movimento traduzindo um medo desesperado de que aquela fosse a primeira e única vez na vida que pudéssemos fazer aquilo.
Foi intenso, ardente e, acima de tudo, esperado.
Outro filme passou pela minha cabeça de todos os momentos que vivi com Lettie desde que a conheci. Há quanto tempo eu desejava aquilo? Desde o dia em que voltei para a Terra? Desde o nosso último dia do Treinamento contra os Saiyajins? Ou muito antes disso, desde que eu a ensinei a voar? Eu nem sequer sabia mais. Só sabia que a queria. Queria para sempre. Mais do que qualquer coisa neste mundo.
E os sentimentos de Lettie eram recíprocos. Seu coração exalava um amor tão profundo, tão puro e tão gracioso. Ela chorava, baixinho, sentindo-se plenamente realizada.
Desejamos ficar ali eternamente.
"Parabéns," disse o meu Inimigo. "Acabou de assinar a sentença de morte dela."
Um pânico me acometeu, e me dei conta do que fazíamos.
Desvencilhei-me de Lettie com tanta rapidez que quase caí para trás. Ela me fitou, assustada e de olhos arregalados, com as lágrimas ainda rolando pelo seu rosto, num misto de assombro, confusão e agora, decepção. Eu ainda sentia a quentura e a maciez aconchegante dos seus lábios na minha boca.
Essa não… Cometi um erro gravíssimo…
Não era para aquele beijo ter acontecido!
NÃO!!! O QUE FOI QUE EU FIZ???
Me levantei num pulo, meu peito subindo e descendo, ainda encarando Lettie e tentando compreender o que acabara de acontecer entre nós, quando uma vozinha suave e infantil chamou ao meu lado:
— Papai?
Meu coração quase parou. Devagar, virei minha cabeça e dei de cara com Naíma ao nosso lado. Ela segurava uma boneca bailarina nas mãos e me olhava com um brilho reluzente no olhar, muito semelhante ao de sua mãe.
Ela então abriu um grande sorriso carregado de emoção e, sem mais nem menos, declarou:
— Ah! Estou tão feliz que você e a mamãe se beijaram! Isso significa que finalmente seremos uma família e você será o meu papai para sempre, não é?!?!
A CASA CAIU!!! E agora?!
Obrigada por ler mais um capítulo!
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