No dia seguinte, um dos mensageiros de Jamis me despertou de um sono profundo em minha vasta cama na Quadraria. Informou-me que eu era esperado no Chifre às 11h45. Eu fora acusado de Conduta Imprópria para um Membro do Arcano.
Drazno finalmente tomara conhecimento de minha canção.
Passei as horas seguintes com um vago enjoo no estômago. Aquilo era exatamente o que eu tinha esperado evitar: uma oportunidade para que Drazno e Hilme acertassem as contas comigo.
Pior ainda, era fatal que isso agravasse ainda mais a opinião precária que Loran fazia de mim, qualquer que fosse o resultado.
Cheguei cedo à Sala dos Professores e fiquei aliviado ao deparar com um clima muito mais descontraído que na ocasião em que fora levado ao Chifre por ter agido com má-fé contra Hilme. Armin e Lal Mirch sorriram para mim. Kelvin meneou a cabeça. Foi um alívio saber que eu tinha amigos entre os professores, para contrastar os inimigos que havia feito.
— Muito bem — disse o Reitor em tom enérgico. — Temos dez minutos antes de iniciar os exames de admissão e promoção. Não quero me atrasar, portanto tratarei disso prontamente.
Olhou em volta para os outros professores e viu apenas gestos de concordância.
— A'scor Drazno, exponha sua queixa. Faça-o em menos de um minuto.
— O senhor está com uma cópia da canção bem aí — disse Drazno, em tom acalorado. — É injuriosa. Difama meu bom nome. É uma forma vergonhosa de um membro do Arcano se comportar. — Engoliu em seco, trincando os dentes. — É só isso.
O Reitor virou-se para mim.
— Alguma coisa a dizer em sua defesa?
— Foi uma coisa de mau gosto, senhor Reitor, mas eu não esperava que viesse a público. Na verdade, só a cantei em uma ocasião.
— Muito bem — fez o Reitor, olhando para o papel à sua frente.
Pigarreou e disse:
— A'scor Drazno, você é um asno?
Drazno se enrijeceu.
— Não, senhor.
— Você é dotado de... — tossiu e leu diretamente na página — ...um vagalho fadado a ser falho?
Alguns professores lutaram para controlar os sorrisos. Elohkar riu abertamente.
Drazno enrubesceu.
— Não, senhor.
— Nesse caso, receio não ver qual é o problema — disse o Reitor secamente, soltando o papel na mesa. — Proponho que a acusação de Conduta Imprópria seja substituída por Zombaria Indigna.
— Apoiado — disse Kelvin.
— Todos a favor?
Todas as mãos se ergueram, exceto as de Hilme e Brandon.
— Moção aprovada. A punição disciplinar será a entrega de uma carta formal de desculpas.
— Pelo amor de Deus, Azir — interrompeu Hilme. — Pelo menos faça com que seja uma carta pública.
O Reitor lançou-lhe um olhar furioso, depois deu de ombros.
— Uma carta formal de desculpas, a ser afixada publicamente antes do período letivo de outono. Todos a favor?
Todas as mãos se levantaram.
— Moção aprovada.
O Reitor se apoiou nos cotovelos, inclinando o corpo para a frente, e olhou para Drazno.
— A'scor Drazno, no futuro você se absterá de desperdiçar o nosso tempo com acusações estúpidas.
Senti a raiva irradiar-se de Drazno. Era como estar junto a uma fogueira.
— Sim, senhor.
Antes que eu pudesse me encher de satisfação, o Reitor se voltou para mim:
— Quanto a você, A'lun Vanitas, no futuro se comportará com mais decoro.
Suas palavras severas foram um pouco prejudicadas pelo fato de Elohkar ter começado a cantarolar animadamente a melodia de Asno, asno a seu lado.
Baixei os olhos e fiz o melhor possível para conter o riso.
— Sim, senhor.
— Dispensados.
Drazno girou os calcanhares e se retirou num disparo, mas, antes que atravessasse a porta, Elohkar irrompeu a cantar:
"É um asno refinado, vê-se até por seu andar!
E, por um lumen de cobre, vai levá-lo a passear!"
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A ideia de escrever um pedido público de desculpas me foi desesperador. Mas, como dizem: a melhor vingança é viver bem. Por isso, resolvi ignorar Drazno e desfrutar meu novo e luxuoso estilo de vida na Quadraria.
No entanto, só pude vingar-me por dois dias. No terceiro, a Quadraria tinha um novo proprietário. O alegre baixinho Gave foi substituído por um homem alto e magro que me informou que meus serviços já não eram necessários. Fui instruído a deixar meus aposentos antes do anoitecer.
Foi irritante, porém eu conhecia pelo menos quatro ou cinco pousadas de qualidade similar daquele lado do rio que acolheriam prontamente a oportunidade de empregar um músico premiado com a gaita-de-foles.
Mas o hospedeiro da Toca de Azevinho recusou-se a falar comigo. Os da Veado Amarelo e da Coroa do Rei estavam satisfeitos com os músicos que tinham. Na Pônei Dourado, passei mais de uma hora esperando antes de me dar conta de que estava sendo polidamente ignorado. Quando fui rejeitado pela Toco de Carvalho, já fumegava de raiva.
Tinha sido Drazno. Eu não sabia como o fizera, mas sabia que tinha sido ele. Talvez com propinas, ou com o boato de que qualquer hospedaria que empregasse um certo músico de cabelos brancos perderia os negócios de um grande número de nobres ricos de sua clientela.
Assim, comecei a percorrer o restante das hospedarias na margem de cá do rio. Já tinha sido rejeitado pelas de alta classe, porém sobravam muitos lugares respeitáveis. Nas horas seguintes tentei a Repouso do Pastoreio, a Cabeça de Porco, a Gancho Entortado, a Duas Damas e a Bardo Encantado. Drazno tinha sido muito meticuloso; nenhuma delas se interessou.
Era o começo da noite quando cheguei à Grilo Saltitante e, àquela altura, a única coisa que me mantinha indo em frente era o puro mau humor. Estava decidido a tentar todas as hospedarias desse lado do rio antes de recorrer a pagar novamente por um beliche e um cartão-refeição.
Quando cheguei à hospedaria, o próprio Grilo estava no alto de uma escada repregando um pedaço comprido do revestimento externo de cedro. Olhou para mim quando parei junto ao pé da escada.
— Então você é o tal — comentou.
— Perdão, como disse? — indaguei, intrigado.
— Um sujeito passou por aqui e me disse que contratar um rapazinho de cabelos brancos causaria um monte de inconveniências — explicou ele, indicando com a cabeça meu alaúde. — Você deve ser o tal.
— Bem, nesse caso — respondi, ajeitando a alça do estojo com o alaúde no ombro —, não desperdiçarei o seu tempo.
— Ainda não o desperdiçou — disse o homem, descendo a escada e limpando as mãos na camisa. — Um pouco de música faria bem a este lugar.
Olhei-o com ar inquisitivo.
— O senhor não está preocupado?
Ele cuspiu.
— Esses mimadinhos safados acham que podem comprar até o sol e tirá-lo do céu, não é?
— Esse, em particular, provavelmente poderia — retruquei, desanimado. — E a Lua também, se quisesse combinar os dois para usá-los como suportes de livros.
Grilo deu uma bufada zombeteira.
— Ele não pode fazer porcaria nenhuma comigo. Não hospedo esse tipo de gente, de modo que ele não pode espantar minha clientela. E eu mesmo sou dono deste lugar; portanto ele não pode comprá-lo e me despedir, como fez com o pobre Gave...
— Alguém comprou a Quadraria?
Grilo me lançou um olhar especulativo.
— Você não sabia?
Balancei a cabeça devagar, levando um minuto para digerir a informação.
Drazno havia comprado a Quadraria de pirraça, só para me deixar sem emprego. Não. Ele era inteligente demais para isso. Provavelmente emprestara o dinheiro a um amigo e fizera a coisa passar por uma iniciativa empresarial.
Quanto teria custado? Mil crimos? Cinco mil? Eu nem conseguia imaginar quanto valia uma pousada como a Quadraria. E o mais perturbador era a rapidez com que ele havia conseguido.
Aquilo me situou as coisas numa perspectiva clara. Eu sabia que Drazno era rico, mas, francamente, todo mundo era rico comparado a mim. Nunca me dera ao trabalho de pensar em quão rico ele era, ou em como poderia usar sua fortuna contra mim.
Aquilo era uma lição sobre o tipo de influência que o primogênito de um barão endinheirado era capaz de exercer.
Pela primeira vez, fiquei feliz pelo rigoroso código de conduta da Academia. Se Drazno estava disposto a chegar a esse ponto, só me restava imaginar as medidas drásticas que tomaria se não precisasse manter uma aparência de civilidade.
Fui arrancado de meu devaneio por uma moça que se encostou na porta de entrada da hospedaria e gritou:
— Mas que droga, Grilo! Não vou ficar puxando e carregando coisas enquanto você fica aí parado coçando o rabo! Trate de entrar!
Grilo resmungou alguma coisa entre dentes enquanto pegava a escada e a guardava logo adiante, num beco.
— O que você fez com esse sujeito, afinal? Dormiu com a mãe dele?
— Escrevi uma canção sobre ele, na verdade.
Quando Grilo abriu a porta da hospedaria, um leve burburinho se espalhou pela rua.
— Eu teria muita curiosidade de ouvir uma canção assim. — Ele sorriu. — Por que não entra e a toca um pouco?
— Se o senhor tem certeza — respondi, sem acreditar muito em minha sorte. — É fatal que haja encrenca.
— Encrenca — repetiu ele, com um risinho. — O que é que um garoto como você entende de encrenca? Eu já estava encrencado antes de você nascer. Já tive encrencas para as quais você nem tem palavras — disse.
Virou-se de frente para mim, ainda parado à porta:
— Faz algum tempo que não temos música por aqui numa base regular. Não posso dizer que goste de ficar sem ela. Taberna que se preze tem que ter música.
Sorri.
— Nisso eu tenho que concordar.
— A verdade é que eu o contrataria só para torcer o nariz daquele fedelho rico. Mas se você souber tocar alguma coisa que valha meia porcaria...
Abriu mais a porta, transformando o gesto num convite. Senti o cheiro de serragem, suor honesto e pão assando.
No fim da noite estava tudo acertado: em troca de me apresentar quatro noites por onzena, ganhei um quartinho no terceiro andar e a garantia de que, se aparecesse por lá na hora das refeições, seria bem-vindo para comer um pouco do que estivesse cozinhando na panela.
Devo admitir que o Grilo estaria recebendo os serviços de um músico talentoso por uma ninharia, mas foi um negócio que fiquei contente em fechar. Qualquer coisa era melhor do que voltar para o Cercado e para o desdém silencioso de meus colegas de beliche.
O teto do meu quartinho se inclinava para baixo em dois cantos, o que o fazia parecer ainda menor do que realmente era. Ficaria atravancado se tivesse mais do que seu punhado de móveis: uma mesinha com cadeira e uma única prateleira acima dela. A cama era tão plana e estreita quanto qualquer beliche do Cercado.
Coloquei meu exemplar meio surrado de Crítica e Retórica na prateleira acima da mesa. O estojo com o alaúde ficou comodamente encostado num canto. Pela janela eu via as luzes da Academia, imóveis ao frio ar outonal.
Estava em casa.
Quando olho para trás, considero-me um sujeito de sorte por ter acabado na Grilo. É verdade que as plateias não eram tão ricas quanto as da Quadraria, mas me apreciavam de um modo como os nobres nunca haviam apreciado.
E, embora minha suíte na Quadraria fosse luxuosa, meu quartinho na Grilo era cômodo. Pense em termos de sapatos: você não precisa dos maiores que possa encontrar, precisa do par que sirva. Com o tempo, aquele quartinho da Grilo passou a ter para mim um jeito maior de lar do que qualquer outro lugar no mundo.
Mas, naquele momento específico, eu estava furioso com o que Drazno me havia custado. Por isso, quando me sentei para escrever minha carta aberta com o pedido de desculpas, ela ficou encharcada de uma sinceridade venenosa.
Foi uma obra de arte. Bati no peito de remorso. Desfiz-me em lamentações e rangi os dentes por ter difamado um colega de estudos. Também incluí uma cópia completa da letra, com mais dois versos novos e toda a partitura musical. Depois desculpei-me com extrema minúcia por cada insinuação vulgar e mesquinha incluída na canção.
Feito isso, gastei quatro preciosos iyanes do meu dinheiro em papel e tinta e cobrei o favor que Jaxon me devia por eu ter trocado com ele meu horário posterior da prova de promoção. Jaxon tinha um amigo que trabalhava numa gráfica e, com sua ajuda, imprimimos mais de cem cópias da carta.
Então, na noite anterior ao início do bimestre de outono, Alas, Leif e eu as afixamos em todas as superfícies planas que conseguimos encontrar nas duas margens do rio. Usamos uma adorável cola alquímica preparada por Leif para essa ocasião. A mistura era aplicada feito tinta, secava e depois endurecia com a transparência do vidro e a dureza do aço. Se alguém quisesse retirar as cartas afixadas, precisaria de martelo e formão.
Em retrospectiva, foi uma tolice tão grande quanto provocar um touro raivoso. E, se eu tivesse que dar um palpite, diria que essa insolência, em especial, foi a principal razão de Drazno acabar tentando me matar.