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27.77% A Herança Saiyajin e a Solidão do Guerreiro / Chapter 10: Capítulo 09

Chapitre 10: Capítulo 09

PICCOLO

— MESTRE, EU TE IMPLORO, NÃO ME SOLTA, POR FAVOR!

No topo de um precipício, eu segurava Lettie pelo colarinho do uniforme. Suas pernas balançavam em desespero ao fitar o amontoado de árvores a centenas de metros lá embaixo.

— Faltam apenas seis meses para os Saiyajins chegarem! — respondi com impaciência. — Você VAI aprender a voar HOJE! Está me enrolando há dias com esse seu medo de altura! Olhe só para Gohan!

Nós dois o avistamos entrecortar os céus pela região daquele planalto, gargalhando na mais pura felicidade por conseguir voar sozinho no dia anterior.

— M-M-MAS NÃO SE ESQUEÇA DE QUE SOFRI UM TRAUMA MUITO GRANDE QUANDO RADITZ ME RAPTOU! — replicou ela, batendo o queixo. — E-E-EU AINDA NÃO SUPEREI! A-A-ACHO QUE VOU PRECISAR DE TERAPIA!

— Sua terapia se chama Piccolo. — Esbocei um sorriso ousado. — Agora, concentre-se. Vou te soltar em cinco… quatro… três…

— ESPERA!!! ESPERA!!! — Ela agarrou meu braço. — E-EU… EU… ACHO QUE ESTOU MENSTRUADA! É, É ISSO MESMO! E-EU MENSTRUEI ONTEM A NOITE, SABE? E-ENTÃO, HOJE É O MEU DIA DE FOLGA!

— Pare de me enrolar com suas falácias, Lettie! Sei muito bem que você menstruou semana passada, porque me obrigou a comprar mais chocolate. Pelos meus cálculos, você está ótima agora e cheia de energia. Três-dois-um-VAI!!!

E a soltei.

— AAAAAAAAHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!

Caro leitor, não se preocupe. Sou rápido o bastante para pegá-la antes de se estatelar lá embaixo.

— AAAAAAAAHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!

Vamos, Lettie! Concentre-se!

— AAAAAAAAHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!

Vamos!!!

— AAAAAAAAHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!

Ela… Ela não estava conseguindo!!!

Disparei penhasco abaixo.

Mas Lettie caía muito rápido. Mais rápido do que calculei.

Senti um calafrio na espinha ao pensar que, talvez, eu não conseguisse alcançá-la a tempo.

Será que fiz besteira?!

— AAAAAAAAHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!

DROGA, PICCOLO!

Reuni todo o meu Ki e acelerei o mais rápido que consegui. 

Minha pulsação gritava em meus ouvidos.

Mas eu não perderia Lettie. Nem pensar.

Eu estava quase a alcançando, só mais uns três metros e conseguiria segurá-la pelo pé.

Lettie ergueu a cabeça ao me avistar, e nossos olhos se encontraram.

Ela então parou de gritar e abriu um sorriso travesso para mim.

No próximo segundo, ela ajeitou o corpo e, numa combustão de energia, saiu voando antes de atingir as árvores, me deixando num estado da mais plena estupefação.

A safada me enganou!

— HAHAHAHAHA!!! — zombou ela de mim, voando veloz por entre as nuvens daquele céu azul. — TE PEGUEI!

Por pouco, quase que eu me estatelei nas árvores, distraído pela astúcia daquela mulher, e desviei no último instante, a ponto de sentir minha capa se rasgando por algum galho.

Me impulsionei até ela. Enquanto eu tentava alcançá-la, Lettie fugia de mim aos gritinhos, rindo tão alto quanto Gohan voando em algum outro lugar por aí.

Tive de admitir, ela era mesmo uma Saiyajin.

Ainda precisava melhorar sua técnica de voo, mas era rápida. Muito rápida.

Persegui Lettie por um tempo, o que foi bom para ela se acostumar com a variação do ar. No entanto, percebi que algo de estranho acontecia comigo ao voar atrás dela; algo que talvez eu nunca tenha experimentado de verdade.

Eu estava me divertindo. 

Eu… não conseguia parar de sorrir!

Alcancei Lettie e voamos juntos. Ela parecia ter o melhor dia de sua vida, abrindo os braços e sentindo o vento no rosto.

— Essa é a melhor sensação do mundo!!! — Ela me olhou com um sorriso de orelha a orelha, e não consegui não retribuir.

Lettie então disparou para o alto. Fomos subindo e subindo, deixando um rastro branco de nuvens atrás de nós, até que alcançamos uma altura em que víamos a curvatura da Terra, e paramos.

Ofegantes, um ao lado do outro, contemplamos nosso planeta em silêncio, acima das nuvens. Como era belo… Como era… esplendoroso! Tudo tão intenso e azul, com suas águas limitando as ilhas e continentes com suas florestas, desertos e cadeias de montanhas...

Ao ver toda aquela paisagem, fui tomado por tamanha emoção, que meu coração dobrou de tamanho.

E Lettie parecia sentir o mesmo.

— Eu mal posso acreditar… — disse ela.

— O que foi?

— Seis meses atrás, eu era a pessoa mais infeliz daquela arena clandestina. Não tinha perspectiva de vida alguma, muito menos um objetivo. — Seu semblante era abatido, contudo, ela virou-se para mim, com um olhar cheio de brilho e uma lágrima escorrendo pelo seu rosto ao abrir um grande sorriso. — Mas, hoje, eu… e-eu acho que sou a mulher mais feliz do mundo!

Então, para minha total surpresa, Lettie me abraçou.

— Obrigada… — Ela sussurrou em meu pescoço. — Por tudo o que está fazendo e nos ensinando.

Travei ao receber seu gesto, e uma lembrança veio à minha mente: da primeira e única vez que Lettie me abraçou. Foi quando ela descobriu da possibilidade de ressuscitarem Goku com as Esferas do Dragão na noite em que os salvei das leoas. Naquela época, seu toque me causou tanta aversão, que ela precisou se afastar.

Mas ali, a quilômetros de altura do solo terrestre em sua companhia, a única coisa que desejei foi abraçá-la de volta. Porém, eu não me sentia merecedor ou digno de fazer aquilo.

Como Lettie podia dizer que era a mulher mais feliz do mundo? Como ela poderia insinuar que tal felicidade vinha por minha causa? Como eu, Piccolo, depois de tudo o que os fiz sofrer, ainda recebia sua gratidão?

Não pense que, mesmo depois de meses, me esqueci daquele terrível dia em que Lettie passou mal da menstruação. Não pense que a dolorosa sensação da culpa havia me deixado.

A imagem do seu corpo destroçado com sangue escorrendo pelas pernas e de Gohan também machucado com um olho roxo nunca saíram da minha cabeça; estavam sempre, sempre comigo.

Mas o calor e o carinho de Lettie me envolveram ali, e retribuí seu abraço, o qual me preencheu com uma sensação de paz e conforto que vinha de dentro pra fora.

Ela então se afastou, se apoiando em minhas ombreiras, e disse:

— Só tem uma coisa que me deixa triste.

— O quê? — Me preocupei. — Tem algo de errado?

— É que… — Ela desviou o olhar e escondeu um sorriso, corando nas bochechas. — A-Acho que a partir de agora, você não vai mais me carregar por eu não saber voar, não é?

Me enrijeci, suando frio. Com certeza, devo ter ficado bem mais vermelho que ela. Então… quer dizer que ela gostava quando eu a carregava em meus braços?

De repente, não soube porque, senti uma pontada de arrependimento por tê-la ensinado a voar.

O silêncio entre nós já estava ficando constrangedor, sobretudo porque eu ainda segurava sua cintura. Que bom que Gohan resolveu aparecer, gritando a plenos pulmões:

— TIA LETTIE!!! A SENHORA CONSEGUIU!!! VIVA, LEGAAAAAL!!!

Não sei se fiquei aliviado ou desapontado ao vê-la se distanciar de mim para ir ao seu encontro pelos ares, mas logo ri ao ver os dois fazerem uma dancinha sincronizada em comemoração.

Gohan então disse:

— Quem chegar por último no Acampamento, faz o jantar! Lero-leroooo! — E saiu em disparada.

Lettie olhou pra mim com um sorriso ainda tímido, dando de ombros, e voou atrás dele, comigo também os acompanhando logo em seguida.

Naquela noite, fui eu quem fiz o jantar.

***

— Afaste esses pés, Lettie. Estão muito juntos.

Cerca de dois meses depois, treinávamos no final da tarde numa área descampada. Lettie estava à minha frente, fazendo levantamento de uma rocha de uns quinhentos quilos. Gohan nos assistia sentado ali próximo, suado por também ter feito o mesmo exercício há pouco (só que com uma rocha menor), enquanto bebia água de um odre.

— Cento e noventa e oito… — contava Lettie ao se agachar, entredentes e com o rosto vermelho. — Cento e noventa e nove… Duzentos!!! — E largou a pedra ao seu lado.

— Ótimo. — Assenti, de braços cruzados.

— Muito bom, Tia Lettie! — Aplaudiu Gohan. Ela caminhou até ele e também bebeu água.

— Obrigada, querido — replicou, se abanando devido ao calor.

— Será que hoje, depois do tleino, podemos explorar aquela floresta que fica do outro lado do vale? — indagou Gohan.

Lettie colocou as mãos na cintura e estreitou os olhos para enxergar melhor a direção que seu sobrinho apontava.

— Acredito que sim. — Ela virou-se para mim. — Tudo bem irmos lá?

— Sim. Mas ainda não acabamos. Volte aqui.

Enquanto Lettie dava uma corridinha para voltar à sua posição, Gohan perguntou:

— Falta muito para acabar o tleino?

— Mais uns… cinco minutos — respondi. — Vamos lá, Lettie. — Ergui minha mão ao lado da minha cabeça. — Quero que dê um salto nesta altura. Não é para levitar. É para saltar, hein?

— Certo! — Ela flexionou os joelhos, esfregando as mãos. — Pode deixar!

Lettie se impulsionou para cima e saltou.

Ao pousar os pés no chão, a terra estremeceu.

— Ainda está causando muito impacto — eu disse. — Precisa ser mais leve.

— Será que já posso ir explorar a floresta enquanto vocês terminam o tleino? — Gohan piscou seus imensos olhos negros, com as mãos entre as pernas como um anjinho inocente.

— Nada disso — respondi. — Não deve explorar esses lugares sem a supervisão de um adulto.

— Por favorzinho, Sr. Piccolo! — Ele entrelaçou as mãos na frente do corpo.

— Esse truque não funciona mais comigo. Minha resposta é não.

— Mas, eu sou um Saiyajin! — Ele fez um bico irritado. — Já sei me defender sozinho! Semana passada, eu e a Tia Lettie conseguimos enflentar aquele grupo de leoas e saímos sem nenhum arranhãozinho!

— Gohan, obedeça-o — disse ela num tom firme. — Se ele disse não, é não.

— Obrigado. — Lhe dei um aceno de cabeça.

— De nada. — Ela fingiu uma reverência.

Gohan ficou emburrado, com seu bico maior ainda, e eu e Lettie trocamos olhares divertidos. Era interessante como ela nunca tirava minha autoridade na frente de Gohan. Nunca. Podia até discordar de mim, mas sempre vinha falar em particular se algo que fiz ou disse não lhe agradasse, até chegarmos num acordo.

— Tá, só mais um exercício, então. — Estiquei meu braço bem acima de minha cabeça. — Lettie, quero que salte nesta altura. Se a terra tremer quando você tocar no chão, ficará sem jantar.

— Esse truque também não funciona mais comigo. — Ela estreitou os olhos e me deu um meio sorriso pretensioso, e perdi o argumento.

Ela saltou na altura que pedi e caiu com a leveza de uma folha de papel.

— Aeeee, finalmente! Acabou! — Gohan correu até nós e puxou a tia. — Vamos logo, antes que escureça e os animais vão todos dormir!

— Tá bom, tá bom! — Lettie saiu tropeçando nos próprios pés ao ser arrastada pelo sobrinho. — Vá com calma, não vai dar para explorar tudo hoje.

— Vinte minutos, hein?! — Cruzei os braços ao avistá-los se distanciarem.

— Certo! — Lettie acenou para mim. — Nos vemos no Acampamento! Até logo!

— Tchau, Sr. Piccolo! — despediu-se Gohan e ambos levantaram voo até sumirem da minha vista.

Torci os lábios e resmunguei, pelo simples prazer de fazê-lo, e também levantei voo para o lado oposto em direção ao Acampamento.

Ao cruzar o rio, decidi pescar alguns peixes, pois Lettie e Gohan gostavam de comê-los com a sopa. Tá, eu sei. Minha regra era que eles pescassem ou caçassem quando quisessem comer alguma carne, mas… acho que não fazia mal um favorzinho vez ou outra para eles, não é? Afinal, estavam indo muito bem no Treinamento; excelentes, até.

Era entardecer quando cheguei ao Acampamento. Ainda faltavam alguns minutos até eles voltarem. Deixei os peixes ao lado da fogueira apagada e me sentei no meu canto para meditar e relaxar um pouco.

Um minuto se passou, e pensei que, talvez, eu devesse acender a fogueira para Lettie. A folga semanal deles seria só amanhã, então, ela deveria estar cansada, e tenho certeza de que ela apreciará minha ajuda.

Assim o fiz.

Pronto. Agora, sim, de volta à minha meditação.

Outro minuto se passou, e pensei que, talvez, eu devesse já limpar os peixes, pois Gohan poderia se engasgar com algum espinho. E um Saiyajin morrer por conta de um espinho de peixe seria o mais ridículo dos cúmulos.

Assim também o fiz.

Pronto. Agora, SIM, de volta à minha meditação.

Vários minutos se passaram, e Lettie e Gohan não voltaram.

Já tinha escurecido, e mais cinco minutos se passaram, então, dez minutos, quinze, vinte, trinta, quarenta…

Comecei a ficar nervoso. Nervoso e irritado. Me levantei e fiquei andando pra lá e pra cá no Acampamento. Aqueles dois idiotas devem ter se distraído demais com alguma planta ou animal bobo e ficaram lá explorando, se esquecendo do nosso combinado. HÁ! Mas quando eles chegarem, vão ver só! Vou jogar fora todos esses peixes e apagar a fogueira e esconder a colher de pau e–

— MESTRE!!!!!!!!!!! — Lettie surgiu pelos céus e pousou ao meu lado com tamanha força que toda a terra estremeceu e quase perdi o equilíbrio.

— O QUE É ISS– comecei a falar, mas paralisei ao ver que Lettie esboçava uma feição muito assustada e, pior que isso, chorava.

— É o Gohan! — exclamou ela.

Senti um calafrio na espinha.

— O que tem ele? — Minha voz saiu um sussurro.

— E-Eu… — disse Lettie. — Digo, n-nós explorávamos a floresta, como fazemos todos os dias. Estávamos quase para vir embora, quando ouvimos um barulho estranho. — Ela ofegava sem parar. — F-Foi aí que avistamos aquele T-Rex, passando por entre as árvores, e p-precisamos nos esconder.

— Por que vocês não saíram voando?

— As árvores eram muito densas naquela região. Não tinha passagem! Chamei Gohan para nos escondermos atrás de alguns arbustos grandes, mas ele se apavorou com o dinossauro e disparou para outro lado. E-Eu... — Ela soluçou. — E-Eu… não consegui ir atrás dele na hora, porque o T-Rex passou bem atrás de mim. Quando aquela coisa se distanciou, comecei a procurá-lo, mas não podia gritar por seu nome, senão o bicho nos acharia!

Lettie massageava o peito, agarrando a gola do seu kimono em ansiedade.

— Já estava escurecendo, e eu não conseguia enxergar mais nada. Corri pela floresta atrás de Gohan, até que encontrei uma passagem por entre as árvores e saí voando. Gritei pelo nome dele por todo o canto, mas ele não respondia.

— E o Ki dele?! — Agora, era eu quem estava ansioso. — Conseguiu sentir?!

— Isso é o mais estranho! Ora eu sentia, ora não sentia… — Lettie abriu a boca e os braços. — E-Eu não sei dizer!

Coloquei a mão no queixo, pensativo, e ponderei:

— Gohan deve estar com medo. Suas emoções podem estar sobressaindo o Ki e interferindo no seu rastreio.

— F-Foi o que pensei. — Lettie juntou as mãos na frente do corpo. — Por isso decidi voltar para o Acampamento e… — Ela me olhou com olhos marejados. — Pedir sua ajuda.

Fez-se silêncio, e o único som que eu escutava era o do meu coração pulsando em meus ouvidos.

Afastei minha capa e coloquei as mãos na cintura, dando uma volta em meu próprio eixo enquanto pensava, sentindo a irritação me consumir outra vez. Eu sabia, sabia que aquela porcaria de "exploração da natureza" só me daria dor de cabeça!

Virei-me para ela de um modo tão brusco que a assustei.

— Que coisa, Lettie! Como pôde perder o garoto?! Deveria ter sido mais atenta e cuidado melhor de Gohan! Você é praticamente a mãe dele!

Ela franziu o cenho, abrindo a boca em indignação, e retrucou:

— Bom, e você é praticamente o pai!

Enrijeci a mandíbula, sentindo minhas bochechas queimarem, e nos encaramos por longos segundos, com nossos peitos subindo e descendo em agitação. Suas palavras me fizeram apertar tanto as mãos, que minhas unhas me machucaram.

Lettie também enrubesceu e desviou o olhar, abraçada a si mesma. Então, ainda tomada pelo nervosismo, deu de ombros e voltou-se para mim com os olhos vermelhos.

— Você poderia ter ido conosco para nos proteger! Ao invés de ficar aqui não fazendo NAD– Ela de repente parou de falar, e segui seu olhar, o qual avistou a fogueira acessa e os peixes limpos por mim. Ela corou de novo e cobriu o rosto, soluçando num choro silencioso: — Perdão… E-Eu falhei…

Toda a minha raiva se dissipou, e a observei.

Lettie parecia tão pequena ali... Tão indefesa…

Mirei meus pés e pressionei os olhos, inspirando fundo, e refleti se havia sido mesmo necessário ser tão grosso com ela. Demonstrar rispidez num momento tenso não contribuiria em nada.

Droga. Quando eu pensava que já havia melhorado, eu errava mais uma vez. Eu precisava me controlar mais.

— Está tudo bem — eu disse, por fim, na entonação mais mansa que consegui. — Eu... Eu não deveria ter colocado toda a responsabilidade de Gohan somente em você. Como seu treinador, também sou responsável por ele. Desculpe tê-la assustado.

Lettie assentiu, compreensiva, se aproximou e tocou meu braço.

— Então, vai me ajudar? — Ela me olhou de baixo, engolindo saliva ao esboçar uma expressão de dor. Eu sentia sua pele contra a minha. Ela me apertava com força; uma força boa, não agressiva, mas suplicante e carinhosa.

— É claro — respondi, convicto. — Nós vamos encontrá-lo.

Levantamos voo e deixamos o Acampamento. Pelas próximas horas, circundamos toda aquela região e mais além, chamando por Gohan e tentando rastrear seu Ki.

Mas, foi inútil.

Estava nublado, o que deixou a noite ainda mais escura, e tudo o que ouvíamos era o típico som dos animais noturnos, e a única coisa que eu sentia, era a tensão de Lettie. Nos separávamos e nos uníamos pelos céus, apenas para compartilhar a mesma notícia de nenhum sinal de Gohan.

Já devia ser mais de meia-noite quando decidimos encerrar a busca e retornamos ao Acampamento. Estávamos exaustos do dia cansativo de Treinamento, o que afetou a qualidade de nosso voo.

O fogo já havia se extinguido, e os peixes já cheiravam mal, e tive que jogá-los fora, no final das contas.

Lettie estava tão arrasada, que não quis comer nada, e a vi se dirigir a barraca com lágrimas descendo pelo rosto sujo.

— Ei… — a chamei, e ela se virou com um olhar vazio para mim, o que me causou um mal-estar. Limpei a garganta e prossegui: — Ainda conseguimos sentir o Ki de Gohan, então significa que ele não está morto, só está em algum lugar que não conseguimos localizar. Descanse e recupere suas energias, tentaremos de novo hoje cedo, tudo bem?

Ela apenas anuiu com a cabeça e entrou na barraca, e fiquei plantado no meio do Acampamento com a mente e o coração perturbados.

Fui para o meu canto ao lado da fogueira e a acendi. Em seguida, tirei minha capa com as ombreiras e o turbante, e massageei meus músculos tensionados e doloridos pelo dia pesado, fritando meu cérebro ao pensar onde Gohan poderia estar.

Quinze minutos depois, uma melancólica Lettie saiu da barraca, toda descabelada e com os cobertores debaixo do braço. Ela caminhou de ombros caídos até parar na minha frente.

Ergui as sobrancelhas, aguardando uma explicação.

Ela então suspirou e disse:

— Passei os últimos sete meses dormindo na companhia de Gohan, e agora, não estou conseguindo. — Seus olhos brilharam numa carência extrema. — Posso dormir aqui do seu lado?

Caramba, por que cargas d'água achei aquela visão tão fofa?

— Mas você não dormia sozinha antes disso? — perguntei, ignorando aquele sentimento. — Quando morava na arena clandestina?

— Sim… — Ela nem aguardou eu dar minha resposta se poderia ou não dormir ali e já ajeitou os cobertores no chão. — Mas, acho que agora fiquei mal acostumada.

Apenas relevei, dando de ombros, e ela se deitou, com a cara enfiada no cobertor de Gohan, e permanecemos em silêncio com o crepitar das chamas.

— Piccolo… — A ouvi falar, baixinho. — O que será de mim se não o encontrarmos?

Me virei para ela, exibindo uma feição muito confusa. A partir do momento que aceitou ser treinada por mim, mesmo sendo desnecessário pelas nossas idades similares, Lettie sempre me chamou de Mestre; talvez por achar legal ou por achar que usar aquele título lhe dava a impressão de que nosso Treinamento era algo para se levar a sério. Entretanto, aquela foi a primeira vez que ela me chamou pelo nome desde então; que se dirigiu a mim como uma igual, e não como aluna.

Com minha boca entreaberta, a assisti se sentar, abraçada as pernas, mirando a fogueira com os olhos repletos de lágrimas. Meu coração bateu de um modo esquisito. Estava acelerado, mas, também parecia… dilatado, e tive uma estranha vontade de tocá-la para consolá-la.

Estiquei a mão, mas hesitei, cerrando o punho. Por um instante, respirei fundo, tomei coragem e enfim alcancei suas costas, a afagando com delicadeza. Lettie fechou os olhos e relaxou o corpo, o que me deixou aliviado em saber que não havia feito uma besteira.

— Gohan é um garoto esperto — eu disse. — Tenho certeza de que está bem. É capaz até dele conseguir nos encontrar primeiro.

Lettie sacudiu a cabeça, devagar, apertando os olhos com as palmas da mão.

— Eu não posso perdê-lo… — sussurrou ela. — Para todos os efeitos, Goku está morto. Gohan agora é minha única família que sobrou. — Ela me fitou nos olhos. — Não posso perdê-lo! Não posso… — Então, baixou a cabeça com um soluço. — E foi tudo culpa minha, você mesmo disse.

Esbocei um semblante grave enquanto me xingava mentalmente.

— Eu fui um idiota — externalizei meus pensamentos. — A culpa não foi sua. Vocês passaram por uma situação muito atípica. Poderia acontecer com qualquer um. Comigo, até. — Dei um riso baixo para animá-la.

Ainda bem que funcionou, pois ela me respondeu com um pequeno sorriso choroso.

— Acho que — cruzei os braços —, no fundo, tenho uma parcela de culpa, por trazer vocês para treinar num lugar tão hostil.

— Bom… — Lettie deu de ombros. — No início, achei loucura morarmos num lugar como este durante um ano. — Ela olhou ao redor. — Mas, agora, confesso que sentirei falta do nosso Treinamento quando acabar e eu tiver que voltar para a minha antiga vida.

— Então, acha que você e Gohan derrotarão os Saiyajins? — indaguei.

Só nós dois? — Lettie apontou para si. — De modo algum. Também compartilho da sua teoria de que teremos ajuda dos outros guerreiros e, quem sabe, até mesmo do meu irmão, caso for ressuscitado. Além de que você fará uma grande diferença. — Ela ergueu uma sobrancelha. — Ou vai abandonar eu e Gohan na hora da luta?

Com um olhar firme, respondi:

— Nunca.

Ficamos nos olhando com uma expressão de companheirismo mútuo por um momento. Foi somente quando percebemos que estávamos fazendo aquilo por mais tempo que o normal, que disfarçamos uma tosse ou um pigarro.

— E-Então… — Cocei atrás da cabeça. — O que você vai fazer quando… tudo acabar?

Lettie me lançou um olhar temeroso.

— Pior que não faço ideia. Na verdade, evito pensar no assunto.

— Por quê?

— Porque eu teria de encarar a realidade de que não tenho nada.

— Como assim? — Franzi o cenho.

Lettie soltou um riso desdenhoso de si própria.

— Não sei se você se lembra, mas… eu não tenho mais casa. Ela foi destruída pelo Raditz. Todas as minhas economias estão sendo gastas neste Treinamento, e a única roupa que tenho foi você quem me deu. — Ela soltou um longo suspiro cansado e abatido. — Quando digo que não tenho nada, é no sentido literal da palavra.

A realidade da sua condição me atingiu com mais força do que imaginei, a ponto de sentir um formigamento incômodo.

Eu nunca tinha parado para pensar que Lettie realmente não tinha para onde ir depois que tudo acabasse. Quando os Saiyajins fossem derrotados (assim esperava), ela voltaria a ficar… sozinha.

Confirmando minhas palavras, ela completou, num tom cheio de pesar e, sobretudo, de medo:

— Vou voltar a ser uma sem-teto.

Suas palavras me causaram mais dor que um soco na boca do estômago, e o clima entre nós ficou constrangedor. Apertando o tecido das minhas calças inconscientemente, procurei alguma coisa para falar. Qualquer coisa.

— Hã… Sabe… Você… Hã… Poderia talvez arrumar um emprego?

— Seria o ideal. — Lettie curvou os lábios para baixo ao olhar a fogueira. — Mas, onde? E do quê? — Ela me deu um meio sorriso acanhado. — Eu não tive uma criação como a de Gohan, sabe? Meus conhecimentos acadêmicos são beeem limitados. Esqueceu que larguei a escola com catorze anos? Inclusive, sou eu quem aprende mais em nossas explorações da natureza do que Gohan. — Ela riu de leve. — Você precisa ver! Ele sabe o nome científico de quase todas as plantas e animais, chega a ser bizarro! É certo que em breve ele completará cinco anos, mas, mesmo assim, ainda é bizarro.

Não consegui evitar não rir junto. Gohan causava mesmo esse efeito com toda sua nerdice.

— É… — Apoiei as mãos nas minhas pernas cruzadas. — Nisso, serei obrigado a concordar. Mas, voltando a você — apontei para ela —, por que não tenta um emprego em Escolas de Artes Marciais, lá na cidade?

— Do quê? — Lettie riu com descaso. — Como professora?

— Exato.

Ela empertigou as costas, bem surpresa com minha sugestão.

— V-Você está falando sério?

— Sim. Por que não estaria? — respondi. — Com o conhecimento que você já adquiriu de tudo o que te ensinei, e o que ainda vai aprender até a chegada dos Saiyajins, já é capaz de ensinar em qualquer Escola de Artes Marciais. É claro que talvez não entre como uma professora do nível avançado, mas, não tenha dúvidas de que você já é plenamente capaz de ensinar o que sabe. — Peguei um graveto da fogueira e o remexi nas mãos, baixando os olhos ao de repente sentir meu rosto corar, e disse: — S-Se você quiser, posso te acompanhar na entrevista de emprego.

Quando terminei de falar, ousei olhar para Lettie. Ela me encarava, pelo visto embasbacada com minhas palavras. Após alguns segundos em silêncio, seus olhos brilharam e ela soltou num sussurro:

— Você é... é um anjo...!

— C-Como é que é? — Me inclinei para ela, piscando várias vezes.

— Eu disse que você é um anjo…! — replicou ela, com a mesma expressão no rosto.

Fiquei ainda mais confuso.

— E posso saber o porquê?

O brilho nos olhos de Lettie aumentou.

— Porque você é a primeira pessoa (fora o Gohan) que de fato acredita que eu seja capaz de fazer alguma coisa. E estou falando sério, porque, infelizmente, já tive muita experiência nessa área. É raríssimo encontrar alguém como você. — Ela me deu um sorriso gentil. — Alguém bom.

Como é que é?

Alguém bom? Lettie me achava uma pessoa boa?

Aquilo era impossível, e a terrível lembrança que tive só confirmou meus pensamentos. Baixei a cabeça, com uma profunda tristeza apertando meu peito.

— Você me chama de bom, mas, parece que já se esqueceu de como tratei você e Gohan nos primeiros meses de Treinamento.

Lettie inclinou a cabeça, com um pequeno sorriso compreensivo.

— Olha, sendo muito sincera, sua cara me diz que você não tem nenhum orgulho daquela época. E isso é bom, Piccolo. Significa que você mudou. — Seu tom era carregado de convicção. — E não pense que eu não vi isso, ou Gohan.

Engoli uma saliva amarga e tracei o graveto na palma da minha mão, sentindo a mente e o coração conturbados, mas também com uma estranha sensação de acolhimento vindo da parte de Lettie, me convidando para soltar o que estava preso aqui dentro.

— Às vezes, acho que não sou tão diferente do meu pai — eu disse, baixinho, e olhei para ela. — Você já deve ter ouvido falar dele, Piccolo Daimaoh.

— Já ouvi falar. — Ela anuiu com um semblante sério. — Até onde sei, foi um homem terrível.

— Sim… — Mirei a fogueira com um olhar vidrado. — Ele se considerava o Rei dos Demônios. — Me virei para Lettie e tentei olhá-la nos olhos, mas não consegui e dei um sorriso amarelo, repleto de insegurança enquanto girava o graveto nos dedos displicentemente. — Talvez, esta seja a minha sina, não é? — Minha voz falhou com o nó que se formou na minha garganta. — S-Ser um demônio… e carregar os erros do meu pai.

Ficamos em silêncio, então, Lettie se aproximou de mim e tocou meu braço com delicadeza, me trazendo um sentimento de paz no mesmo segundo.

— Piccolo, escute o que vou te dizer. — Sua entonação era calma, mas convicta. — Você não tem culpa por quem seu pai era ou pelas atrocidades que fez. Se ele decidiu se envolver com gente estranha, isso era um problema dele, e não seu. E, pra ser honesta, acredito que nem mesmo ele era um demônio. É bem mais provável que você e ele também sejam apenas alienígenas, assim como eu, Gohan e Goku. Agora, quanto a você pensar que é um demônio, eu literalmente acabei de falar que você é o extremo oposto, e não minto quando digo que te falei aquilo com a maior sinceridade em meu coração.

Entreabri a boca e arquejei de leve, incapaz de conter uma respiração trêmula em meu peito ao ouvir suas palavras.

O que estava acontecendo comigo?

Por que sentia meus olhos arderem e uma enorme vontade de chorar? Por que uma mistura de dor e tristeza profunda me rasgavam por dentro? Ao mesmo tempo que também sentia uma espécie de alívio e acalento ao refletir em tudo o que Lettie acabou de me dizer.

Por que, ao pensar no que meu pai foi e fez, uma onda de repulsa pouco a pouco me atingia, ao invés do orgulho que outrora senti por ser sua prole? Por que a ideia de ser o Dominador e Conquistador do mundo agora parecia tão… banal e sem sentido?

Será que Lettie tinha razão? Será que passei minha vida achando que eu era um demônio, mas, na verdade, era apenas um alienígena vivendo em outro planeta, solitário e sem ninguém, assim como ela?

Eu não tinha a resposta para nenhuma dessas perguntas, contudo, tinha uma resposta para Lettie, resumida em uma única palavra:

— O-Obrigado… — Tentei sorrir para ela, mas o que saiu foi uma mistura de choro e riso que escapou da minha garganta, me deixando tão envergonhado, tão temeroso de que ela pensasse que eu era um fraco, que fiz o possível para rapidamente limpar meus olhos, fungar e disfarçar a vermelhidão que decerto cobria todo o meu rosto.

Porém, Lettie permaneceu ali, mostrando que não me achava um fraco e apertando meu braço com afeto enquanto retribuía meu sorriso da forma mais doce que podia.

O que fiz para merecer a admiração e carinho daquela mulher? Ou de Gohan?

Se formos contar, eu fiz mais mal a eles do que bem. Poxa!, mesmo diante das circunstâncias, Goku fora morto por minhas mãos!

E mesmo assim...

Lá estava Lettie, demonstrando aquele ar de admiração e respeito que até agora não sabia da onde tirou. E Gohan, estava perdido em algum lugar por aí, sozinho e com medo dos terrores da noite.

Não. Eu não iria decepcioná-los.

Ajustei minha postura e esbocei uma feição confiante para Lettie.

— É melhor você dormir. Já é alta madrugada e teremos um dia longo.

— Tem razão. — Ela cobriu um bocejo e se ajeitou nos cobertores outra vez. — Foi bom conversar com você. Boa noite, Mestre.

Pronto. Lá estava minha aluna de volta.

No entanto, antes de deitar a cabeça, ela a ergueu com um pequeno sorriso.

— Promete que não vai sair do meu lado?

Pela primeira vez na minha vida, a amargura que sempre senti se esvaneceu, e respondi com firmeza:

— Sim, eu prometo.


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Obrigada por terem lido mais um capítulo!

Já houve algum momento em sua vida em que você se sentiu acolhido pelas palavras e gestos de alguém? Como você se sentiu?

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