PICCOLO
Nunca um fim de semana demorou tanto para chegar.
Passei os dias contando as horas para rever Lettie e Naíma, ao mesmo tempo que me repreendia por desejar tanto a companhia delas.
Foi uma semana difícil. Fiz de tudo para me distrair: treinei em lugares inóspitos, explodi rochas aleatórias, meditei, fiz companhia para os outros Namekuseijins… Inclusive, cheguei até a brincar com Dendê, ensinando-lhe algumas técnicas de luta (que humilhação!). Ele não levava muito jeito para lutas, pois ele não era do Clã Guerreiro como eu, mas sim, do Clã Dragão, e suas habilidades envolviam assuntos concernentes às Esferas do Dragão.
Por alguma razão, quando eu treinava sozinho, me sentia mal por Lettie. Ela não tinha o mesmo luxo que eu de não precisar trabalhar para se sustentar, como fizemos durante nosso Treinamento. Às vezes, eu me sentia culpado por não ajudar com nada na renda da casa. Afinal, querendo ou não, apesar de tudo o que meu cérebro gritava contra, eu ainda me considerava como marido-e-pai-não-oficial de Lettie e Naíma.
Além disso, fiz a besteira de visitar nosso antigo Acampamento. Isso só fez com que a voz do meu Inimigo soasse mais alta na minha cabeça, com suas ameaças de morte me rondando cada vez mais. Chegou a um ponto em que precisei manter uma jarra com Água Sagrada no meu quarto, de tantas dores de cabeça eu sentia devido ao estresse.
O interessante foi que, por conta de toda minha angústia, Kami-sama passou a ficar sempre por perto, me perguntando como eu estava ou se precisava de algo. Era tão estranho… Nunca imaginei que sua presença paterna fosse tão… boa. Eu não estava acostumado com tal comportamento nem sabia como reagir àquilo.
Desde que passei a ir ao Templo para buscar comida durante o Treinamento, sempre o tratei com secura e, por vezes, até com rispidez. E agora, toda vez que eu o via, com sua postura encurvada devido à idade e sempre segurando um cálice com Água Sagrada para mim, aquela mesma sensação de constrangimento, que me acometeu quando machuquei Lettie e Gohan, voltava a me consumir.
De qualquer modo, quase não consegui dormir na noite de sexta para sábado, tão ansioso eu estava em reencontrar Lettie, Naíma e Gohan para passarmos o fim de semana juntos. Droga. Eu e minha boca grande, fazendo promessas difíceis de cumprir e agora tendo que honrar meus compromissos.
Tínhamos combinado de que era para eu estar lá no sábado de manhã, pois Lettie queria que eu, como seu antigo Mestre, assistisse suas aulas e avaliasse se estava se saindo bem. Quando cheguei em sua casa, Lettie ainda não havia acordado, o que só me deixou mais ansioso. Tudo bem, digamos que cheguei lá pelas cinco da manhã e ela acordaria só dali a umas duas horas, mas isso é um mero detalhe. O que me restou foi aguardá-la numa das poltronas de vime da varanda, que ficava embaixo de uma das janelas principais da fachada.
Foram as duas horas mais angustiantes da minha vida. Só perdeu para as três horas que esperamos por Goku quando enfrentamos os Saiyajins. Pelo menos tive o privilégio de assistir ao nascer do sol dali. Foi um espetáculo e ouso dizer que, naquele momento contemplativo, esqueci dos meus problemas.
Nota mental: apreciar mais a natureza.
No fim, nem precisei tocar a campainha. Lettie me recebeu, ao disparar porta afora, aturdida ao me encarar, ainda sentado na poltrona.
— Senti o seu Ki e vim correndo! — alegou ela. — Faz tempo que você chegou?!
Sem querer, a analisei de cima a baixo. Ela terminava de amarrar um roupão branco por cima do pijama, com seus clássicos cabelos desgrenhados e os olhos azuis parecendo faróis, enquanto recuperava o fôlego.
Tive que me conter muito para não beijá-la ali mesmo e perguntar se ela não queria ir ao cartório mais próximo para nos casarmos ainda naquela manhã. Gohan poderia ser nosso pajem e Chi-chi a madrinha e— PARE COM ISSO, PICCOLO! ESTÁ LOUCO?!
— Bom dia para a senhorita. — Me coloquei de pé, fingindo desdém. — Você dorme demais.
— E você precisa parar de me assustar com suas chegadas repentinas. — Lettie colocou as mãos na cintura, me dando um olhar brincalhão e gesticulando para que eu entrasse de uma vez.
Ah, como eu amava aquela casa! Estar lá dentro também contribuiu para a diminuição da minha ansiedade, com sua atmosfera aconchegante. Os raios solares da manhã passavam pelas janelas, banhando tudo como o calor de um abraço. Melhor do que isso, foi ser recebido pelo sorriso banguela de Naíma depois que sua mãe foi buscá-la no quarto.
Logo, eu tomava café-da-manhã com Lettie, enquanto Naíma devorava uma mamadeira em seu colo. Um belíssimo e cheiroso pão caseiro recém-saído do forno repousava numa travessa no centro da mesa e em pouco tempo desapareceu, majoritariamente por minha culpa. Após isso, fiquei cuidando de Naíma no sofá enquanto Lettie se trocava para organizar sua Escola para a aula.
— Ué, onde está o uniforme que fiz para você? — indaguei ao vê-la retornar do quarto usando um kimono básico de Artes Marciais.
Lettie baixou a cabeça, e li que seus sentimentos se tornaram tristes.
— Tive que guardá-lo, porque, infelizmente, estragou na nossa luta contra os Saiyajins, e você… — Ela desviou o olhar. — Você não estava aqui para consertá-lo.
Silêncio.
Naíma olhou para mim e apertou meu polegar, como se entendesse o que conversávamos. Recuperei minha compostura e respondi, firme:
— Pois vá buscá-lo. Irei consertá-lo agora mesmo.
Lettie abriu um grande sorriso e, quinze minutos depois, vestindo seu antigo uniforme azul restaurado por inteiro, ela recepcionava seus alunos de uma porta daquela sala redonda que dava para o quintal. Fiquei com Naíma, sentado num banco comprido acoplado à parede, observando o movimento.
Uma nova onda de ansiedade quis dominar-me. Os alunos daquela turma tinham no máximo dez anos. Será que algum deles pensaria que eu era o terrível Piccolo Daimaoh? Afinal, éramos muito parecidos. Ou elas nem sequer ouviram falar dele? E seus pais, suspeitariam de alguma coisa? Talvez o fato de viverem em vilarejos mais afastados da sociedade contribuísse para que minha reputação não fosse ruim por causa do meu pai.
Obtive minha resposta assim que uma garotinha de uns oito anos chegou, toda alegre ao cumprimentar Lettie e elogiar seu uniforme, e me viu sentado com Naíma.
— Oi, Naíma! — Ela cumprimentou a bebê e, então, me olhou com curiosidade. — Quem é você? Nunca te vi por aqui.
— E-Eu… — Engoli saliva, nervoso. — Eu sou… Piccolo.
— Piccolo? — Ela inclinou a cabeça e, para minha surpresa, sorriu. — Que nome bonito! Gostei!
Meus ombros até relaxaram após sua declaração e, sem querer, sorri de volta. Contudo, a pergunta que ela me fez a seguir quase me fez ter um infarto:
— Você é o namorado da Mestre Lettie?
— Quem me dera… Digo!!! — Fingi um acesso de tosse. — Não. Sou apenas um amigo e vim assistir à aula. Na verdade — endireitei minha postura —, sou o antigo Mestre dela. Lettie foi minha aluna.
— Jura??? — A menina escancarou a boca em perplexidade e virou-se para os colegas que se ajuntavam no tatame. — Pessoal! Venham aqui conhecer o Mestre da Mestre Lettie!
Logo, fui rodeado por várias crianças, as quais me bombardearam de perguntas. Não consegui responder nenhuma, pois uma falava por cima da outra em empolgação, e Lettie teve que vir ao meu socorro e ordenar que todos voltassem para o tatame para iniciarem a aula.
Foi uma manhã muito agradável. Lettie era uma excelente professora; muito carinhosa e paciente, bem diferente de como eu a tratei com Gohan no início do nosso Treinamento. Eu tinha muito o que aprender com ela.
Aquela era uma turma do nível básico, então a aula transcorreu com sessões de aquecimento para preparar os músculos, técnicas de golpes para iniciantes como chutes, cotoveladas, joelhadas e socos, e depois jogos interativos e lúdicos com simulações de lutas. Em certo momento, as crianças (e até Lettie) imploraram para que eu as ensinasse alguma técnica.
Morrendo de vergonha, entreguei Naíma para a mãe e fiquei de pé na frente de todas aquelas crianças, as quais me fitavam com uma fome pelo aprendizado. Decidi manter o nível básico e, no fim, as ensinei exercícios de equilíbrio e coordenação motora. Elas adoraram a experiência e confesso que eu, também.
— Você leva muito jeito com crianças — sussurrou Lettie ao sentar ao meu lado no final da aula, no momento em que ela colocava uma música calma no rádio e fazia exercícios de alongamento e relaxamento para as crianças deitadas no tatame. — Já pensou em dar aulas também? Posso abrir uma vaga de professor para você. — Ela riu.
— Depende do salário — objetei.
— Quanto você quer?
Quase disse, "Nada. Apenas uma vida ao seu lado me basta", mas contive minha língua e respondi:
— Não sei. Talvez eu pense no assunto.
— Bom, a proposta está feita. — Ela esboçou um pequeno sorriso, voltando o olhar para os alunos.
— Escuta — prossegui —, desculpe perguntar, mas, eles não têm uniforme?
Analisamos as crianças. Nenhuma delas estava apropriadamente vestida para uma aula de Artes Marciais/Defesa Pessoal. A maioria usava roupas comuns do dia a dia que não ajudavam nos movimentos e exercícios. Algumas meninas estavam até de vestido.
— Ah, Piccolo… — Lettie pressionou os lábios, se mostrando pesarosa e encabulada. — Não exigi isso deles. Você sabe como uniformes são caros. As famílias dos meus alunos são de baixa renda. Alguns deles se apertam muito para pagarem essas aulas para seus filhos aprenderem a se defender.
Foi impossível eu não me recordar de quando conheci Lettie e indaguei se ela tinha outro kimono além daquele velho que usava. Na época, ela me respondeu que ainda não tinha conseguido comprar um novo. Decerto, ela entendia bem as dificuldades financeiras que aquelas famílias passavam. Bem até demais.
Entretanto, também me recordei que, assim que Lettie me informou que não tinha conseguido comprar um kimono novo, eu fiz o uniforme que ela majestosamente usava agora.
Tive uma ideia.
— Assim que terminar a aula, chame seus alunos um por um — pedi.
Confusa, Lettie assim o fez. A garotinha que me cumprimentou foi a primeira.
— Fique parada. — Lhe dei um pequeno sorriso tranquilizador para que não se assustasse. No segundo seguinte, ela estava usando um kimono completo e novo, feito com o melhor material que consegui imaginar.
A menina surtou de felicidade. Todos os alunos se encantaram com minha habilidade de criar roupas e, logo, uma fila se formou para cada um receber seu novo uniforme. Em todo o momento, percebi que Lettie me olhava com seu típico brilho nos olhos, tão emocionada quanto seus alunos por esta minha "boa ação".
Meu medo de que os pais dos alunos não gostassem de mim se dissipou quando eles viram seus filhos saindo da aula usando o uniforme novo e grátis. Quando Lettie contou para uma mãe que todo o crédito daquele feito fora meu, a mulher me deu um baita susto ao me abraçar, debulhando em lágrimas de agradecimento e alegando que nunca em sua vida teria condições de comprar algo de tamanha qualidade para o filho. Fiquei absurdamente sem graça com sua declaração e meu coração doeu de maneira genuína ao ver a simplicidade de toda aquela gente.
Quando todos foram embora, Lettie virou-se para mim, com um sorriso de orelha a orelha enquanto segurava Naíma:
— Não me canso de dizer o quanto você é incrível.
Seus olhos miravam minha alma. Quase entrei em pânico com aquele olhar, pois li os sentimentos de Lettie, e eles nitidamente me disseram o quanto ela queria me beijar naquela hora.
Socorro!!!
Fui salvo pela chegada de Gohan. Havíamos combinado de ele vir na hora do almoço e lá estava ele, de mala e cuia, para passar o fim de semana na casa da tia e da nova priminha.
Lettie fez hambúrgueres caseiros no almoço. Eu teria de ficar esperto, pois se eu continuasse a me empanturrar com todos aqueles quitutes incríveis, teria que dobrar meu treino para eliminar o vestígio de uma pança que aos poucos apertava meu uniforme.
Enfim chegou a hora de levarmos Naíma para tomar suas vacinas, e devo dizer que foi uma experiência traumática para todos, muito obrigado.
Voamos até o posto de saúde mais próximo da região. Ao chegarmos lá, Lettie me informou que não tinha coragem de ver sua preciosa filha passar por tanto sofrimento, e implorou que fosse eu quem segurasse Naíma na hora de levar as picadas nas pernas. De início, achei uma grande frescura, pois que mal poderia ter uma simples agulha??
Fui todo pomposo e de nariz empinado com Naíma quando a enfermeira chamou. Antes de entrar na salinha, fiz uma careta de desaprovação para Lettie, a qual já chorava baixinho enquanto era consolada por Gohan.
Quebrei minha cara. Lindamente.
Assim que Naíma recebeu as picadas nas pernas, seus sentimentos se transformaram no mais profundo pavor e desespero. Era óbvio que ela não compreendia o porquê raios sentiu tamanha dor DO NADA. Fiquei em choque, paralisado e estupefato, e, quando menos percebi, EU tentava conter minhas lágrimas ao ver minha filhinha passar por tanto sofrimento. Decerto já acostumada com tal reação dos pais, a enfermeira me consolou e me deu um panfleto com dicas do que fazer com bebês que tomam vacinas caso não se sintam bem.
A volta para casa de Lettie foi meio conturbada. Ela não quis voar com Naíma naquele estado abatido, portanto, precisamos pegar um táxi. No meio do caminho, Lettie disse o quanto precisava comprar um carro.
— Chi-chi tinha razão. — Ela aninhou uma chorosa Naíma no peito. — Não posso confiar só nas minhas habilidades de voo. Ainda bem que tirei minha carteira assim que adotei você, não é, minha querida? Está doendo muito?
De quebra, Lettie sugeriu que eu também tirasse, pois "vai que acontece alguma coisa e você precisa nos socorrer!". Torci o nariz para a sugestão, pois achei um tremendo absurdo. Porém, ao relembrar o quanto quebrei minha cara lá no posto de saúde, cogitei que ela não estava de todo errada.
Talvez eu devesse mesmo tirar uma carteira de motorista. Afinal, um marido-e-pai-não-oficial precisava estar preparado para qualquer situação inusitada com suas meninas, não é?
"Não importa o quanto você se prepare," disse o meu Inimigo. "Nenhuma das duas sobreviverá."
Passei o resto do caminho em silêncio.
Tivemos uma tarde agitada. Naíma não se sentiu bem por conta da vacina e ficou febril. Lettie fez compressa fria no local da picada, mas a febre baixou só um pouco. Felizmente, ela conseguiu fazê-la dormir, e aproveitou a deixa para preparar alguns cookies na cozinha enquanto eu treinava com Gohan no quintal.
Próximo ao final da tarde, após eu bloquear um ataque dele, minha super audição captou um chorinho de Naíma em seu quarto. Me concentrei para ler seus sentimentos: medo.
— Gohan — o chamei —, vamos dar uma pausa. Preciso checar uma coisa.
— Sim, Sr. Piccolo. — E assim voltamos para dentro da casa.
— Aonde você está indo? — perguntou Lettie, checando os cookies no forno. — Aconteceu algo com Naíma?
— Não se preocupe — garanti. — Deixe comigo.
De fato, comprovei que Naíma estava acordada no berço, ainda muito desconfortável pelo mal-estar da vacina. Com a maior delicadeza possível, peguei-a em meus braços. Lettie ficou bem aflita ao me ver passando pelo corredor entre a sala de estar e cozinha com sua bebê chorando baixinho, mas a tranquilizei outra vez e saí, me sentando na poltrona da varanda a qual me sentei pela manhã.
Por um momento, me permiti contemplar a paisagem que rodeava aquela casa. O Sol já começava a baixar no poente, atrás da cadeia de montanhas que contornava aquela região.
Devagar, segurei Naíma em minhas mãos e nossos olhares se encontraram. Ela então fez o maior bico de choro, com seus olhinhos negros enchendo-se de lágrimas e seus sentimentos gritando uma carência extrema.
Ah, como desejei que toda sua dor passasse para mim…
Não consegui suportar mais.
— Pronto, pronto, minha pequena… — A aninhei em meu pescoço, com uma onda do mais puro amor e carinho me cobrindo. — Papai está aqui…
Fiz tudo o que não tive coragem de fazer até agora: a abracei, beijei o topo de sua cabeça e transmiti o máximo de proteção e consolo que ela precisava naquele momento. No entanto, um temor me acometeu e olhei para os lados, receoso de que Lettie ou Gohan tivessem me visto ou ouvido.
Está louco, Piccolo?! Nunca mais faça isso!
Se Naíma aprendesse a me chamar de "papai", tudo estaria arruinado! Pior que isso, se Lettie ouvisse, como eu explicaria o meu sonho?!
Novamente, coloquei Naíma a minha frente e nossos olhares se encontraram. Seu medo havia se dissipado. No lugar dele, um grande sorriso banguela se formou.
Com meu coração sangrando, eu disse:
— Preste atenção, Naíma. E-Eu… Nós… não podemos ficar juntos. Eu, você e a Lettie, entende? — Engoli uma saliva amarga. — Esta é a coisa mais difícil que estou fazendo. Está me consumindo vivo! Mas saiba que é pelo bem de vocês duas. Tenho os meus motivos. — Fechei meus olhos com força, contendo o nó em minha garganta. — É… É terrível demais para vocês saberem! — Dei um terno beijo na testa de Naíma, permitindo que as lágrimas caíssem. — Talvez um dia eu possa contar para vocês toda a verdade, mas ainda não estou preparado. Por favor, tenha paciência comigo. Apesar de deixar de fazer aquilo que mais desejo, estarei sempre aqui. Protegerei você e sua mamãe.
Naíma então apertou meu polegar com força. Poderia ser impressão minha ou ilusão da minha mente, mas pude jurar que ela tentava me consolar através do seu gesto, enquanto seus olhinhos negros miravam os meus com um brilho repleto de afeto. Foi quase como se ela dissesse, "Está tudo bem. Eu te entendo."
Aquilo preencheu meu coração de paz e eu a aninhei em meu pescoço outra vez, afagando suas costas até ela pegar no sono. Quando retornei para dentro de casa, a sua febre tinha baixado.
À noite, Lettie pediu uma pizza, o que alegrou muito Gohan, pois ela o deixou comer enquanto assistia TV. Na verdade, foi uma sessão-cinema. Como Gohan gostava de animais e natureza, Lettie colocou um desenho sobre um corcel selvagem que foi capturado por alguns soldados e precisou fugir com a ajuda de um indígena nativo. Admito que eu quase chorei. Quase. Quando o filme terminou, Naíma dormia em meu colo e Gohan no de Lettie. Com cuidado, colocamos os dois no quarto e saímos.
Parados na frente da porta do quarto, Lettie me deu um sorriso doce. Meu coração disparou. Sem querer, me permiti imaginar… Se fôssemos casados, também viveríamos um dia como esse em nossa rotina? Um dia comum, na companhia um do outro, nos afazeres simples da casa, da vida, da Escola, comendo pratos deliciosos e nos divertindo com as crianças até tarde… E então, à noite, após colocá-las para dormir, eu tomaria Lettie nos braços, a levaria para o nosso quarto, tomaríamos um banho juntos em nossa suíte e depois, faríamos amor por um bom tempo e…
NÃO, PICCOLO! O QUE ESTÁ PENSANDO?!?!
Quanto tempo fiquei ali parado, olhando para Lettie e imaginando essa fantasia impossível? Droga.
Sem querer, também li os sentimentos dela.
Lettie desejava o mesmo que eu.
Aquilo só me deixou mais apavorado, e minha covardia falou mais alto. Em poucas palavras, agradeci pela hospitalidade, garanti que voltaria amanhã para visitá-los e fui embora. Quando cheguei no meu quarto no Templo, tarde da noite, encontrei uma jarra cheia de Água Sagrada deixada por Kami-sama. Antes de me deitar na cama para dormir, tomei a jarra inteira.
***
— Não demorem muito! — Lettie sorriu e acenou da varanda com Naíma no colo. — Estarei esperando vocês!
Eu e Gohan acenamos de volta e levantamos voo. Estava uma bela manhã ensolarada de domingo. Iríamos pescar para Lettie fazer um assado especial no almoço. A caminho de um grande rio que entrecortava a região, percebi o quanto Gohan estava feliz em fazer uma atividade comigo que não envolvia treinos ou lutas. Me lembrou dos momentos que explorávamos a natureza juntos no final de um dia de Treinamento. Bons tempos…
O rio não estava com muitos peixes, então passamos um bom tempo explorando as águas para ver se encontrávamos alguma espécie boa. Tanto eu quanto Gohan queríamos levar um peixe bem grande para surpreendermos Lettie.
— Sr. Piccolo — chamou Gohan —, agora que o senhor voltou, vai se casar com a Tia Lettie?
Engasguei comigo mesmo e tive uma crise de tosse. Disfarçando o máximo que pude, chamei sua atenção ao apontar para um peixe invisível. Meu disfarce não funcionou. Gohan me olhava de um modo indagador e de braços cruzados. Soltei um longo suspiro.
— É complicado…
Silêncio. A água da leve correnteza batia em nossas canelas.
— O problema é a Naíma? — indagou Gohan. — O senhor não gostou que a Tia Lettie a adotou?
— Não! — Balancei a cabeça veementemente. — De modo algum!
— Eu não entendo… — replicou ele. — Vocês se gostam, não é?
Dei de ombros mas também não neguei.
— Então, qual é o motivo, Sr. Piccolo?
— Eu já disse, Gohan! — Senti uma grande irritação. — É complicado. E quanto aos motivos, eu tenho os meus.
Silêncio outra vez. Eu nem precisava olhar para Gohan para saber sua linguagem corporal indignada.
— Isso é um absurdo! — disse ele. — Vocês dois estão perdendo tempo!
Por fim, o encarei. Profundamente.
— Acha que não sei disso, Gohan?! Acha que isso não me atormenta dia e noite?! — Meus olhos arderam e precisei limpá-los para disfarçar as grossas lágrimas que se formaram. Tal comportamento meu, porém, pareceu ser o suficiente para Gohan enfim perceber o quanto todo aquele assunto era, de fato, complicado, e o quanto eu ainda não estava preparado para falar sobre aquilo com mais detalhes. Por fim, ele baixou a cabeça e apenas murmurou:
— Vocês adultos sempre me deixam muito confuso… Igual meu pai.
— Por que diz isso? — Franzi o cenho. — O que tem seu pai?
Gohan ficou quieto por alguns segundos, até que ergueu seus grandes olhos negros. Assim como os meus anteriormente, estavam repletos de lágrimas.
— Sr. Piccolo… Acha que o meu pai gosta de mim?
Me empertiguei, piscando várias vezes, agora eu sentindo confusão.
— E por que não gostaria?
Gohan fungou e, com a voz embargada, perguntou:
— Então por que ele prefere ficar longe, treinando, do que ficar comigo e com a mamãe?
Foi como se eu levasse um soco na boca do estômago. Juro que quase perdi o equilíbrio ali, sobre os pedregulhos do solo daquele rio. Para completar minha conturbação, Gohan começou a chorar, baixinho, com uma postura muito envergonhada por estar tão vulnerável. Seus sentimentos estavam uma bagunça.
Devagar, me agachei para ficar na sua altura e, com todo o carinho que eu sentia por aquele garoto, o peguei no colo e o abracei, permitindo que ele chorasse à vontade na segurança dos meus braços.
Gohan era apenas uma criança. Uma criança que já tinha visto e sofrido muita coisa ruim.
Ficamos um longo tempo ali, com ele chorando em meu pescoço.
— À-Às vezes — disse ele —, queria que o senhor e a Tia Lettie fossem meus pais de verdade.
Meu coração doeu intensamente com suas palavras, pois ao ler seus sentimentos percebi que de fato um profundo amor paterno emanava dele em relação a mim.
Mas o que se responde quando uma criança te fala uma coisa dessas?
— Vai ficar tudo bem… — Foi a única resposta que consegui dizer, pois se eu falasse mais, era capaz de eu chorar com ele. Fiz outra nota mental de falar para Lettie orientar Chi-chi a também colocar Gohan na terapia. Talvez, de todos nós, ele fosse quem mais precisava.
Voltamos com um grande peixe, e Lettie fez jus à sua promessa e preparou um belíssimo assado para o almoço.
Durante a tarde, decidimos aproveitar o dia e ficar no quintal. Por conta do que presenciei pela manhã no rio com Gohan, achei melhor não treinar com ele, mas sim, apenas… brincar. Como se ele fosse só mais uma criança normal no mundo, não o filho de um dos guerreiros mais poderosos do Universo. Encontramos uma bola de futebol num dos armários do seu antigo quarto e ficamos ali no gramado, jogando um para o outro.
Lettie nos observava da poltrona de vime da varanda, com a filha nos braços tomando mamadeira. Minha pequena Naíma ainda não estava reestabelecida do mal-estar da vacina, então ainda precisava de descanso.
Em certo momento, senti o olhar de Lettie sobre mim e me virei em sua direção. Nossos olhos se encontraram. Trocamos um pequeno sorriso, piscando devagar um para o outro. Lettie soltou um suspiro, enquanto seus sentimentos exalavam uma grande felicidade.
Já os meus sentimentos eram cada vez mais confusos. E a voz do meu Inimigo na minha cabeça, era cada vez mais alta. Pelo menos eu não estava com dores de cabeça.
À noite, nenhum deles conseguiu ficar acordado até o filme terminar. Estavam todos cansados do fim de semana agitado. Então, com cuidado, fui levando um a um para suas camas, exceto Gohan, o qual fiquei encarregado de levar para Chi-chi no final do domingo.
Primeiro levei Naíma para o berço, e enfim pude sentir o gostinho que tive em meu sonho de colocar minha filha para dormir. Felizmente, ela já se sentia melhor, e dei-lhe um suave beijo na testa como despedida.
Foi a vez de Lettie, a qual dormia no sofá. Com delicadeza, passei meus braços por suas costas e pernas e a peguei no colo. Pobrezinha, estava exausta e ainda precisaria trabalhar cedo no dia seguinte. O estresse que passou com as vacinas de Naíma a derrubou de tal maneira, que nem conseguimos treinar neste fim de semana. Ao colocá-la na cama, a cobri e a observei por um tempo.
Ah, como meu coração doeu! Ter que deixá-las ali para ficar mais uma semana longe. Com meus olhos ardendo com a dor que agora me queimava impiedosamente de dentro para fora, saí daquele quarto o mais rápido que pude e levei um adormecido Gohan para casa.
Naquela noite, deitado na cama do meu quarto no Templo, tive um vívido pesadelo. Nele, meu Inimigo me mostrava os corpos de Lettie e nossos filhos. Mortos. E a culpa era toda minha.
Acordei de madrugada num súbito, com o coração disparado e meus lençóis ensopados. Trêmulo, peguei a Água Sagrada e tomei metade da jarra.
Mas a voz do meu Inimigo não saía dos meus ouvidos.
Coloquei minha cabeça entre as mãos e chorei, amargamente.
Até quando terei de suportar tamanha opressão?
Quem tenta adivinhar o filme que eles assistiram na sessão-cinema?
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