PICCOLO
A morte revelou o meu sonho.
Um sonho tão vívido que, se não fosse pelo constante lembrete em meu subconsciente me avisando que eu estava morto, eu pensaria que o vivi de verdade.
Lá estava eu, de pé sobre o topo de uma elevada formação rochosa.
O deserto cobria a paisagem até onde meus olhos podiam alcançar, com sua brisa suave esvoaçando minha capa.
Era estranho… Não sei se eram as minhas ombreiras, mas algo em meu corpo carregava um peso que apenas os anos poderiam trazer.
Sim… Neste sonho, eu estava mais velho do que o meu eu-jovem-adulto do presente, e muito, muito mais forte.
Parado de braços cruzados e com somente o poder do meu Ki, fiz, com primor, diversas toneladas de rochas daquele cenário flutuarem pelos céus pelo maior tempo que consegui. Contudo, assim que as coloquei de volta no chão, cada uma em seu devido lugar e com a delicadeza de uma pluma, entrei em estado de alerta.
Outro Ki poderoso além do meu se aproximava por trás.
Quando me virei num súbito, um raiozinho verde me atacou, e bloqueei seu golpe no último instante. Mas ele não me deu trégua. O pequeno ser logo desferiu um chute na lateral do meu corpo, mas desviei, o fazendo acertar o nada. Ele então levantou voo e pairou acima de mim. Eu não conseguia ver seu rosto, pois sua silhueta ficou entrecortada pelo Sol atrás de si.
— HÁÁÁÁÁ!!!! — Ele gritou e mergulhou veloz na minha direção.
Cruzei meus antebraços num X na frente do rosto, e seu golpe causou um impacto tão forte, que ele caiu no chão à minha frente num baque.
Quando a poeira baixou, finalmente o vi.
Era um menino, de no máximo uns sete anos, esfregando a cabeça dolorida. Sua pele era verde como a minha; seus músculos pelos braços e pernas eram rosados como os meus; suas orelhas eram pontudas como as minhas, e ele usava um macacão de luta roxo, também como o meu.
No entanto, seu rosto exibia as feições de outra pessoa; de uma mulher, na verdade. Uma mulher que eu conhecia muito bem. Inclusive, ao invés de uma cabeça careca como a minha, fartos cabelos negros a preenchiam com um penteado moicano espetado.
— Ai, papai… — reclamou ele, com um bico emburrado. — Essa doeu…
"Papai?" — Meu eu do presente ligou os pontos.
Aquele garoto… seus aspectos físicos…
Ele… Ele era o meu… filho?
Meu eu do presente mal teve tempo de reagir a tal informação, pois o meu eu do futuro logo tomou conta de novo e, com uma paciência que até então nunca havia experimentado em minha vida, me agachei na sua frente.
— O que eu te disse sobre sua impulsividade, Nail? — O olhei com firmeza. — Você continua atacando sem avaliar direito o seu oponente. Precisa pensar antes de agir. — Suspirei ao ver que seu bico se tornou triste, e afaguei seus cabelos. — Você está bem?
— Claro que não. — Ele fungou, aborrecido e ainda massageando a cabeça. — Acho que o senhor fez um galo gigante em mim! Meus dias estão contados!!! Que terrível destino para um garoto tão incrível e poderoso como eu!!!
— Pare com isso. — Me aproximei dele para inspecionar se de fato havia um galo em sua cabeça. — De quem você puxou todo esse drama, hein?
— Do Tio Goku! — Nail me deu um sorriso sem vergonha.
— Ah, claro. Por que ainda pergunto? — Revirei os olhos com um riso. — Acho que vou te deixar alguns meses na casa da Tia Chi-chi para você aprender um pouco de disciplina e–
— HÁÁÁÁÁ!!!! — Outra voz gritou acima de nós e, quando me virei, avistei outro pequeno ser pairando no ar, emitindo um Ki elevadíssimo.
Rapidamente, voltei-me para olhar Nail, mas ele havia desaparecido.
— AGORA, DAIKON!!! — Nail exclamou de algum lugar escondido, e percebi que eu havia caído numa armadilha.
— TENKOCHI!!!!!!!! — O segundo serzinho disparou dez bolas de energia pelos seus dedos das mãos estendidas.
BUM! BUM! BUM! BUM! BUM! BUM! BUM! BUM! BUM! BUM!
Me desviei de todas com sucesso, não sem ficar com minha visão turva pela nova nuvem de fumaça que se ergueu. Ofegante, pousei no solo arenoso lá embaixo e testemunhei a grande rocha desabar em pedaços pelas dez bolas de energia que recebera.
O culpado daquela obra pousou na minha frente com seu macacão de luta azul todo esfarrapado, e me abriu um enorme sorriso com um dente faltando na frente e seus grandes olhos azuis brilhando para mim.
Assim como Nail, ele também era um menino nos seus sete anos, só que não possuía os atributos físicos típicos dos Namekuseijins, mas sim, dos Saiyajins.
— Ah, papai… — Ele me olhou de baixo, chateado. — O senhor é muito rápido… Não é justo…
"O quê?" — Meu eu do presente questionou.
Outro garoto me chamando de papai?
Sorri de volta para ele, me agachei e também afaguei seus fartos cabelos negros e espetados, e vi meus traços faciais refletidos nele.
Sim… Aquele também era meu filho. A semelhança comigo era inegável.
Espere… Dois meninos… Tamanhos e idades parecidas…
Eu tinha… GÊMEOS?!?!
Porém, mais uma vez, meu eu do futuro não permitiu que meu eu do presente interferisse.
— Escute, Daikon — eu disse a este novo garoto —, sua mãe sabe que você anda roubando os ataques dela?
— Não conta pra ela, papai! Por favor! — Ele juntou as mãos na frente do corpo. — Estou praticando pra fazer uma surpresa na apresentação da Escola.
— É mesmo, é?
— Daikon, seu bobão! — Nail pousou ao nosso lado, visivelmente irritado e cuspindo poeira. — Como não foi capaz de acertar nenhuma bola de energia no papai?! — Ele bateu os braços nas laterais do corpo, bufando. — Eu sabia que deveria ter sido EU a lançar o "Tenkochi", e não você!
— Ei! — retrucou Daikon, virando-se para encará-lo face a face. — Só porque você nasceu alguns minutos antes que eu, não significa que pode mandar em mim!
E ambos se pegaram no tapa.
— Muito bem, já chega! — Fiz a proeza de pegar os dois pela gola do macacão e erguê-los até a altura dos meus olhos, exibindo uma expressão firme e severa. — Em primeiro lugar, nem deveríamos estar aqui, treinando. Só viemos após todo o chororô que fizeram pra sua mãe hoje cedo, a qual, a essa altura, deve estar atarefada até o pescoço! Já se esqueceram que hoje a família do Goku vai almoçar lá em casa?
Os semblantes dos meus gêmeos se iluminaram com um sorriso.
— É MESMO! HOJE TEM CHURRASCO! — exclamaram eles em uníssono.
— Será que o Tio Goku me ensina uma técnica nova? — indagou Nail.
— Espero que Gohan não se esqueça de trazer aquele livro sobre insetos que pedi! — acrescentou Daikon.
— Independente de qualquer coisa, não quero saber de bagunça. — Me pus a caminhar, ainda os segurando pelo macacão. — E tomem muito cuidado quando forem brincar com a bebê do Gohan. Ela ainda é muito pequena e pode se machucar.
— Mas ela é metade Saiyajin, papai — replicou Nail.
— Não é não — rebateu Daikon. — Eu e você somos metades Saiyajin e metade Namekuseijin. Ela é um-quarto Saiyajin e três-quartos humana.
— Nerd! — Nail mostrou a língua para o irmão, o qual retribuiu.
— Se vocês estão bem o suficiente para brigarem, estão bem para voarem. — Os coloquei no chão. — Vamos! O último a chegar em casa lava toda a louça depois do almoço! — E levantei voo, os deixando comendo mais poeira.
Infelizmente, fui o último a chegar.
Morávamos em uma casa no interior, rodeados pela natureza e montanhas. Logo que eu e os meninos pisamos nas escadas da varanda de madeira que abrangia a fachada, sentimos um cheiro maravilhoso que vinha lá de dentro.
— CHEGAMOS, E COM BASTANTE FOME!!! — Os meninos dispararam casa adentro, sumindo da minha vista.
Ao entrar, fui tomado por um calor e uma sensação muito agradável, como se toda a vida que existisse naquela casa me recebesse de braços abertos. E comprovei isso quando, mal fechando a porta, alguém pulou no meu pescoço num abraço apertado.
— Papai!!! Que bom que chegou!!!
Ainda agarrada a mim, uma garota usando um vestido, de cabelos compridos pretos e já na fase da adolescência, me olhou de baixo, esboçando o sorriso mais lindo que já vi.
Por um segundo, meu eu do presente se assustou com aquela nova presença; uma presença tão forte, tão amorosa, tão acolhedora…
Quem era essa garota que também me chamou de papai?
Por que, ao olhar para os seus olhos negros, pequenos e intensos, eu sentia como se olhasse por um espelho? Por que enxerguei nela um brilho cheio de vida que eu só havia presenciado antes em uma mulher especial para mim? E por que ela fazia o meu coração dilatar com um amor paterno que nunca imaginei sentir?
Meu eu do futuro logo tomou conta da situação.
— Oi, Naíma. — A abracei de volta, com força.
— Bem-vindo de volta, papai! — Ela pegou minha mão e me arrastou para a cozinha, que ficava logo à frente, na área esquerda do interior da casa, e apontou para a grande mesa de jantar. — Olha só!
Cobrindo todo o tampo retangular de madeira, inúmeros pratos com petiscos, assados, saladas, massas, bolos, tortas, pudins e cremes preenchiam a mesa de jantar.
Nunca vi tanta fartura.
— Gostou? — Os olhos de Naíma brilharam. — Fui eu quem fiz as sobremesas e… EI!!! NAIL E DAIKON!!! SAÍAM JÁ DO MEU QUARTO!!! — E disparou corredor adentro enquanto os gêmeos gritavam de pavor da irmã.
Foi então que senti alguém tocar meu braço.
Um toque quente, carinhoso e… muito familiar.
Quando me virei, meu eu do presente quase morreu pela segunda vez, se isso era sequer possível.
Era ela.
Sim… era ela!
Lettie, me olhando com um sorriso ainda mais lindo que o de Naíma.
Minha esposa. Eu não tinha dúvidas!
Assim como eu, Lettie já não era mais a jovem-adulta que eu conhecia, mas sim, uma mulher formada em toda sua plenitude.
Ela conseguia estar ainda mais deslumbrante do que sua versão presente, com seus cabelos curtos desgrenhados devido à correria, usando o típico pijama cinza que criei para ela, pantufas e com um avental de cozinha azul por cima, combinando com seus olhos.
— Oi, querido. Como foi o treinamento com os meninos? — Ela flutuou até ficar na minha altura, então, lentamente abraçou meu pescoço e pressionou os lábios nos meus, num selinho intenso e profundo. Meu coração disparou na hora quando o meu eu do presente se deu conta do que fazíamos, mas, ao mesmo tempo, o meu eu do futuro, o qual decerto já havia feito aquilo inúmeras vezes, soube o que fazer, e a entrelacei em meus braços, retribuindo seu beijo com carinho. Lettie se afastou e sussurrou, sem tirar os olhos de mim: — Eu também quero treinar com você mais tarde.
Como todo bom marido, fiquei felicíssimo com suas palavras, e trocamos olhares e risadinhas que só um casal com muita intimidade consegue fazer.
— Desculpe por te deixar fazendo tudo aqui sozinha com a Naíma. — Me aproximei de Lettie, a qual já havia voltado para o fogão para mexer numa panela. — Daqui a pouco vou arrumar as coisas lá fora.
— Ah, não se preocupe. — Ela me deu um sorriso compreensivo. — Nós dois estamos trabalhando muito. Os meninos precisavam passar um tempo sozinhos com você. Além do mais — ela ergueu a sobrancelha para mim —, eu não permitiria que você tocasse na minha cozinha. Já não basta a minha torta que você deixou queimar semana passada.
— Ora, amor… — Inclinei minha cabeça com um sorriso travesso. — Você sabe que minha especialidade é sopa, e de preferência, feita num caldeirão e numa fogueira no topo de uma certa formação rochosa com uma barraca no fundo.
— Bons tempos, hein? — Ela suspirou. — Faz quantos anos, desde que você treinou Gohan e eu?
— Não sei e nem desejo saber. Só o fato de Gohan já ser um adulto casado e com uma bebê me faz sentir um velho.
— Mal posso acreditar que somos tios-avós, e ah, você não é velho… — Lettie experimentou o conteúdo da panela. — Só é rabugento como um.
Em resposta, torci o nariz numa careta rabugenta.
Alguns hábitos nunca mudam.
— Mamãe? — Naíma voltou do quarto, com uma feição satisfeita após com certeza ter dado uma bela bronca nos irmãos mais novos, os quais correram para assistir televisão na área da sala de estar ao lado. — Por acaso… hã… o Dendê vem para o churrasco?
Percebi que a pele clara do rosto da minha filha de repente ficou vermelha.
Meu eu do presente não fazia ideia de quem era esse tal de "Dendê". Entretanto, meu eu do futuro sabia, e pareceu não gostar muito do rumo daquele assunto.
— Ah, querida — disse Lettie. — Hoje é apenas um almoço simples com a família do Goku. Prometemos que, na próxima vez, chamamos ele, tá bom?
— Eu não prometo nada. — Cruzei os braços com o mesmo bico rabugento de antes. — Você anda falando demais no Dendê, mocinha. Inclusive, fiquei sabendo que ele te convidou para irem ao shopping, é verdade isso?
— E você, como um bom pai, vai deixá-la sair com o Dendê, não é, amor? — Lettie abraçou Naíma de lado, a qual se mostrava bastante encabulada.
— Não sei, preciso pensar… — Fingi indiferença.
Nossa filha então me olhou de um jeito tão, tão fofo, que foi impossível eu recusar.
— Ah! Está bem, está bem! — Estalei a língua, derrotado. — Tem minha autorização para sair com Dendê. Desde que leve seus irmãos.
— Ei! Não somos guarda-costas! — exclamou Nail do sofá.
— E o Dendê é super legal, pai — acrescentou Daikon. — Para com esse ciúmes bobo.
— Posso saber o que vocês dois estão fazendo aí? — indaguei. — Já pro banho. Estão fedendo! Vão sujar toda a casa.
Antes que eu seguisse pelo corredor para limpar aqueles pirralhos petulantes, Naíma me deu outro abraço apertado.
— Muito obrigada, paizinho! Pode deixar que levo os meninos com a gente. O Dendê gosta muito deles.
É claro que eu não permitiria que os gêmeos arruinassem o encontro da minha querida Naíma, mas concordei apenas para manter minha pose de durão, enquanto Lettie ria ao checar outro assado no forno. Pelo visto, minha reputação para com minha esposa já tinha ido por água abaixo há anos.
Logo, estávamos todos prontos para recebermos nossos convidados, levando os pratos de comida para uma mesa que montei no gramado lá fora, ao lado de uma churrasqueira portátil, a qual eu ficaria responsável. Não demorou muito tempo, e a família de Goku chegou.
Essa parte do meu sonho não ficou muito nítida para o meu eu do presente. Eu vi Goku, Chi-chi e Gohan chegando, mas haviam mais pessoas com eles as quais não consegui distinguir.
Só sei que Goku e Chi-chi tinham mais um filho. Gohan trouxe sua esposa e sua bebê, as quais também não tinham um rosto definido para eu guardar em minha memória.
Era tudo tão estranho e familiar ao mesmo tempo, como se eu conhecesse todos ali há muitos e muitos anos, unidos por um elo harmônico ali no quintal da nossa casa. Eu literalmente estava fazendo churrasco na companhia do meu maior rival, enquanto Lettie e Chi-chi conversavam como melhores amigas, meus gêmeos brincavam com o filho mais novo deles, e Naíma se derretia com a bebê de Gohan.
Por toda minha vida, pensei que minha felicidade viria após eu conquistar e dominar o mundo. Porém, mal sabia eu que, ao testemunhar aquele momento, mesmo que não fosse tão claro para o meu eu do presente, eu pudesse sentir tamanha satisfação e plenitude como algo tão simples como um almoço em família.
No entardecer, após nos despedirmos de todos, os gêmeos capotaram de tanto brincar e os colocamos na cama. Aqueles lá acordariam só no dia seguinte. Uma tarefa a menos. Então, cumpri minha promessa: fui lavar toda a louça. Mas Naíma, pobrezinha, me ajudou a secar e a guardar tudo, enquanto sua mãe enfim descansava no sofá após muita insistência minha. Afinal, Lettie havia trabalhado a manhã toda para que aquele almoço fosse um sucesso, e eu queria ela bem disposta para o que faríamos mais tarde.
Já no começo da noite, eu e Lettie avisamos Naíma que sairíamos para treinar e não tínhamos hora para voltar, o que a deixou extremamente alegre, pois qual adolescente não gostaria de ter a casa toda para fazer o que quisesse, ainda mais quando as duas pestes que ela chamava de irmãos estavam dormindo como pedras e impossibilitados de atrapalhá-la de ver seus filmes e comer todo o sorvete que sobrou na geladeira?
— Por favor, voltem só amanhã! — Ela acenou para nós da porta de entrada na varanda com um grande sorriso. — Ah, amo vocês! Bom treino!
Naíma mal fechou a porta e Lettie me olhou com um sorriso travesso que eu conhecia muito bem. O mesmo sorriso que abriu para mim quando aprendeu a voar quando a treinei com Gohan para derrotarmos os Saiyajins, há tantos anos.
Ela queria apostar uma corrida de voo até o lugar onde treinaríamos naquela noite, e se você é um marido sensato, saberá que é impossível recusar um pedido desses.
Levantamos voo com tamanho impacto, que deixamos uma mini cratera aberta onde antes havíamos montado a mesa do almoço no gramado.
Voamos pelos céus ainda com um resquício do Sol que terminava de se por no horizonte, pintando o firmamento com tons de roxo, azul e rosa, e as estrelas já brilhando na no alto.
Não importava quantas vezes Lettie voava, ela sempre sorria ao sentir o vento contra o seu rosto, e eu sorria ao vê-la sorrir.
Ganhei a corrida, e acho que minha esposa deixou de propósito por saber que eu havia perdido dos meninos pela manhã. Como sempre, Lettie continuava com sua gentileza.
Quando ela pousou ao meu lado, contemplamos o cenário que faria parte do nosso treinamento naquela noite; um cenário tão conhecido e tão, tão querido: nosso Acampamento no topo da formação rochosa.
Tudo estava lá, só que melhor. A barraca, agora velha pela ação do tempo, era rodeada por mais outras duas, as quais abrigavam Naíma e os gêmeos quando visitávamos o local. A fogueira permanecia firme e forte, no mesmo lugar, com o mesmo caldeirão ainda balançando com a brisa da noite em seu suporte de madeira. Afinal, panela velha é que faz comida boa.
Eu e Lettie não treinaríamos exatamente ali, no Acampamento. Iríamos para um campo aberto a uma distância, pois nunca teríamos coragem de destruir um lugar que nos trazia tantas memórias preciosas.
Quando chegamos no campo aberto, nos posicionamos um na frente do outro, separados por alguns metros e iluminados pela grande Lua cheia acima de nós.
Trocamos um pequeno sorriso e nos olhamos profundamente.
Como Lettie poderia continuar tão linda como na primeira vez que a vi na ilha do Mestre Kame? Se eu não tomasse cuidado, eu seria derrotado fácil, fácil, só pelo seu olhar.
Um silêncio caiu entre nós. Parecia que até os animais noturnos pararam para ver nossa luta.
Lettie então se impulsionou para me atacar. Bloqueei seus golpes de braços cruzados, fingindo um semblante desdenhoso, só para me exibir para ela, o que só a fez investir com mais força. Nós dois tínhamos essa dinâmica. Lettie gostava de atacar e eu gostava de defender, cada um explorando os pontos fortes e fracos do outro.
A adrenalina do nosso combate foi se tornando tão intensa, e nosso Ki se elevou a tal ponto que fez a terra tremer a cada golpe, defesa ou ataque que aplicávamos.
Certo momento, só de pirraça, aumentei os pesos no uniforme de Lettie, a qual abriu a boca, numa mistura de riso e indignação.
— Então, você vai jogar sujo, querido? — Ela estreitou os olhos para mim com um sorriso ousado. — Muito bem. Vou entrar nesse seu joguinho.
Lettie levitou, pairando lá em cima no céu, e seu Ki aumentou exponencialmente.
Foi então que algo aconteceu.
Minha esposa se transformou, diante dos meus olhos.
Uma aura de poder a rodeou, seus olhos azuis brilharam como dois faróis, e seus cabelos pretos curtos de repente se tornaram loiros e flamejantes como fogo.
A fitando lá de baixo, meu eu do presente não conseguiu acreditar em tal visão.
O que… era… aquilo…?!
Que tipo de transformação era aquela?!
Tamanho era o poder que emanava de Lettie, que raios saíram das nuvens, e trovões ecoaram em estrondos que mais soavam como bombas.
Ela então ergueu as mãos e dez bolas de energia se formaram em seus dez dedos.
— TEN…KO…CHI!!! — Lettie as disparou em minha direção.
Meu eu do presente ainda estava tão abismado pelo que eu testemunhava, que não tive tempo de desviar. O ataque de Lettie me atingiu por completo, levantando uma gigantesca nuvem de poeira a minha volta, e caí no chão, derrotado pela minha adversária.
Mas eu não me levantei. Continuei estirado naquela areia, sem mover um músculo, com meu uniforme todo sujo e esfarrapado.
O Ki de Lettie diminuiu e a senti voar veloz até mim.
— Oh! Essa não! — Ela me tomou em seus braços, passando a mão em meu rosto, do mesmo jeito que havia feito comigo em meu leito de morte em nossa luta contra os Saiyajins. — Amor??? Você está bem?! Será que peguei pesado?
Permaneci de olhos fechados, sem a responder.
— PICCOLO! — Ela me sacudiu, desesperada. — Fala comigo!
Abri meus olhos num súbito, e foi minha vez de lhe dar um sorriso ousado.
Lettie mal teve tempo de arquejar de surpresa, e a beijei, ardentemente.
No mesmo instante, ela se entregou e segurou meu rosto. Peguei sua cabeça por trás dos seus cabelos e a trouxe para mais perto. Me afastei por um momento e sussurrei:
— Vem cá… — A peguei no colo e levantei voo. Do jeito que ela gostava que eu fazia quando ainda não tinha aprendido a voar.
Eu sabia exatamente para onde a levaria.
Quando chegamos nas Águas Termais, contemplamos sua paisagem noturna. Continuava belíssima, assim como era de dia. Só que agora, além de iluminada pela Lua e pelas estrelas, também era iluminada por diversos vaga-lumes flutuando sobre as piscinas naturais, e por algas que brilhavam sob as águas.
Nem percebi quando já estávamos nus dentro do lago central. Lettie entrelaçou os braços no meu pescoço e, abraçados um ao outro, aproximamos nossos lábios, com beijos lentos e macios conforme movíamos nossas cabeças.
O lugar onde eu havia visto o corpo de Lettie destruído pelas minhas próprias mãos há tanto tempo, agora se tornava o lugar onde eu a amava de toda a minha alma; com meu coração em brasas e dilatado com o sentimento mais puro e profundo que já senti.
Fizemos amor até alta madrugada.
Quando voltamos para casa, encontramos Naíma dormindo no sofá, com um balde gigante vazio de pipoca repousando em seu colo e com um filme sobre princesas bailarinas passando na televisão.
Em silêncio, enquanto Lettie arrumava a bagunça restante da sala de estar e cozinha, peguei minha filha no colo como se ainda fosse a bebê que um dia segurei e a levei para o seu quarto. Ao colocá-la na cama, a cobri e beijei sua testa, porém, quando me virei, senti sua mão me puxar e, ainda de olhos fechados, Naíma sorriu e disse, baixinho:
— Boa noite, papai. O senhor é o melhor pai do mundo. Te amo… — E adormeceu de novo.
Com um sorriso cheio de orgulho, me retirei do seu quarto e fechei a porta. Em seguida, fui conferir os gêmeos. Nail tinha caído da cama e dormia de bunda pra cima no chão, enquanto Daikon fez a proeza de enrolar o cobertor no pescoço ao ponto de quase enforcá-lo, dormindo virado ao contrário. Após garantir que os dois estavam de volta em posições seguras em suas camas, também saí e fechei a porta.
Enfim, eu e Lettie nos arrumamos para dormir em nosso quarto e nos deitamos. Debaixo dos cobertores, ela se aconchegou para recostar a cabeça em meu peito.
— Sabe o que os meninos me disseram hoje? — sussurrou ela.
— O quê?
— Que "o papai é o homem mais forte do mundo".
Mesmo com a pouca iluminação da Lua através das venezianas da janela de madeira, vi que ela sorria para mim. Soltei um riso baixo e respondi:
— Todos sabemos muito bem que o seu irmão é o homem mais forte do mundo, e não eu.
— Pois saiba que isso não é o que eu, a Naíma e os meninos achamos… — Lettie entrelaçou os dedos nos meus, me deu um selinho e caiu no sono no segundo seguinte.
Fiquei ali, deitado em silêncio com ela, fitando o teto. No entanto, apesar da paz que eu sentia ao repassar tudo o que vivi naquele dia, meu eu do presente estava repleto de dúvidas e questionamentos.
Por que eu estava tendo aquele sonho bem no momento em que a vida me deixou lá no campo de batalha com Vegeta e Nappa? O que ele significava? Será que tudo isso foi apenas uma alucinação que a morte me causou?
Mas, parecia tão real…
Cada segundo que vivi neste dia parecia traduzir um desejo profundo que aos poucos cresceu em meu coração conforme passei aquele um ano de Treinamento na companhia de Lettie e Gohan.
Será que, depois de desistir de conquistar o mundo e depois de tanto tempo me perguntando qual seria o meu próximo sonho, eu obtive minha resposta?
Viver na companhia de Lettie, dos nossos filhos, e do restante da nossa família, era o que minha alma ansiava? Viver uma vida simples, compartilhar momentos cotidianos, e treinar após um dia agradável, era o que eu mais queria?
A resposta para estas perguntas veio, e fui tomado por um poderoso sentimento da mais pura e plena… felicidade e contentamento.
Mas então, tudo mudou.
Todos aqueles sentimentos bons foram substituídos por um horripilante calafrio quando senti uma presença se aproximar da nossa casa.
Uma presença maligna.
A luz azulada da Lua em nosso quarto se transformou em vermelho vivo, trazendo consigo uma aura de terror.
Minha pulsação disparou no mesmo instante, me causando um suor frio, e tentei acordar Lettie. Mas ela não despertava. Continuava dormindo como se nada estivesse acontecendo.
Corri quarto afora e fui conferir nossos filhos. Eles também pareciam não terem sentido aquela presença assombrosa que rodeava nossa casa e continuavam em suas camas, do jeito que eu havia os colocado.
Sem nem pensar duas vezes, transfigurei meu pijama para colocar ao menos o meu macacão roxo de luta, pronto para enfrentar quem quer que estava ali ameaçando minha família.
Quando saí da porta de casa e corri para o gramado, olhei para os céus, na procura daquela presença. A Lua estava numa cor de sangue; não só ela, mas toda a paisagem ao redor havia se transformado num cenário macabro, sombrio e tenebroso, causando-me arrepios por todo o corpo.
— QUEM ESTÁ AÍ?! — vociferei. — APAREÇA!
Foi então que avistei; uma figura pairando lá no alto, me encarando com o olhar mais perverso que já vi.
Não consegui identificar o que ou quem era. A única coisa que sei, era que, só de olhá-lo, meu estômago se contorceu em pânico.
— O-O QUE VOCÊ QUER??? — inquiri, não sem minha voz falhar.
Mesmo longe, vi a criatura abrir um sorriso carregado de malícia. Então, ela ergueu os braços para o alto e criou uma gigantesca bola de energia e mirou diretamente na minha casa.
Não…
Não…!
NÃO!!!!!
Antes que eu tivesse tempo de fazer qualquer coisa, a bola de energia engoliu minha casa numa explosão ensurdecedora, me jogando para longe.
Um barulho agudo apitava em meus ouvidos conforme me apoiei no chão para me levantar, sentindo um filete de sangue escorrer da minha cabeça até cair na minha boca. Trêmulo, ergui meu olhar para frente e arquejei no mais completo desespero.
Minha casa estava destruída e, na minha frente, vi corpos estirados.
— Não… — sussurrei, incapaz de sentir meu próprio coração.
Tirando forças da onde não tinha, corri até aqueles corpos e enfim, senti meu coração. Ele quase parou de bater.
Naíma, Daikon e Nail jaziam à minha frente.
Todos mortos.
Caí de joelhos num baque e contemplei meus filhos sem vida.
— N-N-Não… — Percorri minhas mãos pelos seus corpos imóveis, agora sentindo o gosto da mistura de lágrimas e sangue entrando pela minha boca.
— Sr. Piccolo… — Uma quarta voz infantil apareceu ao lado dos meus filhos, e quando o avistei, não consegui respirar.
Era Gohan, também caído no chão com seu uniforme de luta aos trapos. Porém, não era o Gohan adulto e pai de família que havia almoçado conosco mais cedo, mas sim, o Gohan criança, que estava comigo naquele campo de batalha com os Saiyajins.
— Sr. Piccolo… — Seu olhar vidrado encontrou com o meu. — M-Me ajuda…
No segundo seguinte, ele fechou os olhos e seu Ki desapareceu.
— NÃO!!! — Num ato de desespero, entrelacei aqueles quatro corpos em meus braços, os trazendo junto a mim, na tentativa de ver se ainda havia algum resquício de vida neles, mas foi apenas para confirmar que não havia mais volta.
Perdi todos os meus filhos.
Foi então que eu ouvi; uma quinta voz, delicada e feminina.
— P-Piccolo… A-Amor…
Quando ergui meu olhar, finalmente a avistei.
Minha esposa. Também estirada no chão sobre os destroços do que antes fora nosso quarto.
Sentindo uma dilacerante dor cortando meu peito, coloquei nossos filhos de volta no chão com cuidado, e disparei até ela.
— Lettie!!! — A tomei em meus braços, do mesmo jeito que ela havia feito comigo em nossa luta contra os Saiyajins. — Amor, fala comigo!
Seu rosto estava coberto de feridas e cortes causados pelos destroços.
— P-P-Piccolo… — Ela tossiu sangue ao agarrar meu braço, com uma lágrima desenhando um filete por entre a sujeira que a cobria. — V-V-Você prometeu… P-Prometeu que iria nos p-proteger…
E então, ela me encarou, e o brilho que eu tanto conhecia sumiu de seus olhos, tornando-os vazios e tão sem vida quanto os dos nossos filhos adiante naquela paisagem em ruínas.
Não consegui suportar mais.
— LETTIE, NÃO!!! — gritei com toda a força que me restava ao sacudi-la em meus braços. — POR FAVOR, NÃO ME DEIXA!!!
Mas era tarde demais. Não importava o quanto eu os sacudisse ou chamasse pelos seus nomes.
Eu os perdi.
A criatura, a qual assistia a tudo pairando nos céus vermelhos, sobrevoou acima de mim e riu, diabólica e impiedosamente.
— POR QUE FEZ ISSO?!?! — bradei; meus olhos injetados em ira e desolação. — POR QUÊ?????
— Ah, Piccolo, Piccolo… — A voz do meu Inimigo era sibilante como uma serpente maligna. Sorrindo, ele abriu os braços para gesticular a destruição ao meu redor e declarou em alto e bom som:
— Este é o preço do seu sonho.
Então, ele criou outra bola de energia e a atirou, devorando não só a mim, mas tudo além, com sua força letal.
Não vi mais nada. A negritude era a única cor predominante, fazendo-me sentir como se eu flutuasse no vazio domínio da aflição.
Por que aquilo aconteceu? Por que me vi num cenário perfeito com a mulher que amo, com nossos filhos e família, só para vê-los sendo mortos no final por um Inimigo tão impiedoso?
O que aquilo significava?
Que mensagem ou alerta queria me passar?
Foi então que me dei conta. Só havia uma única resposta plausível como explicação.
O que acabei de testemunhar, o que acabei de viver, não poderia ser meu sonho. Simplesmente não poderia.
Aquilo era uma visão, uma premonição.
Sim…
Tudo o que vivi naquele dia foi um vislumbre do que aconteceria na minha vida se eu assumisse meus sentimentos por Lettie e ficássemos juntos.
Aquele era o futuro que nos aguardava. Infelicidade, destruição e morte.
Em ambos cenários, eu quebraria minha promessa: morrendo na batalha contra os Saiyajins, largando Lettie e Gohan para lutarem contra inimigos tão poderosos por conta própria; ou sobrevivendo e me casando com Lettie, tendo nossos filhos e família, só para eu perder todos eles numa terrível catástrofe.
Em ambos os cenários, eu nunca seria capaz de alcançar a felicidade.
Carrego pela eternidade o peso de não os ter protegido, sem a mínima chance de salvá-los do mal.
Não há saída para mim. Este era o meu destino, a minha sina, com o decreto final da minha miserável condição, na voz ameaçadora do meu Inimigo:
"Você falhou, Piccolo.
E quem pagou o preço foi aqueles que amava."
Queridos leitores,
Para piorar o sofrimento de todos nós, gostaria de sugerir que ouvissem uma música.
Ela se chama "Hurt", do compositor norueguês Thomas Bergersen. É bem curtinha, mas acredito que capta todo o sentimento de desolação que Piccolo deve estar sentindo neste momento.Me digam o que acharam da experiência, por favor. Obrigada por lerem mais um capítulo!