Kapitel 20: As Duas e o Sujeito Fantasioso II
Sunless estava começando a se acostumar com conversas no escuro. A ausência de luz parecia trazer uma honestidade inesperada às pessoas, como se a escuridão fosse um véu que as encorajasse a baixar a guarda.
Ele se lembrava de como, durante os blecautes da infância, sua família acabava reunida, conversando por horas sem distrações. Agora, naquele momento, sentia uma estranha nostalgia daqueles tempos.
"Já que vamos depender uns dos outros", começou, quebrando o silêncio, "devemos compartilhar quais habilidades e Memórias temos à nossa disposição?"
Era uma sugestão lógica. Conhecer os pontos fortes uns dos outros era essencial para trabalhar juntos. Ainda assim, ele percebeu a expressão de Nephis endurecer ligeiramente — um olhar cauteloso que ela tentou esconder. Cássia, sentada ao lado de Ariandel, também parecia hesitante, mas não demonstrava tanto desconforto.
"É uma ideia sensata. A transparência pode nos salvar de mal-entendidos futuros", interveio Ariandel em tom levemente descontraído, antes que a tensão aumentasse.
O som agradável de sua voz profunda parecia dissipar qualquer resistência.
Sunless estreitou os olhos para ele, desconfiado. Havia algo perturbadoramente natural na forma como Ariandel conquistava a confiança das pessoas.
"Eu começo", disse então, preferindo tomar a dianteira. "Meus Atributos me dão afinidade com sombras e... um toque de algo divino, acho."
Ele tentou manter o tom casual, mas não pôde evitar um humor irônico. "Ah, e aparentemente tenho um talento especial para me meter em situações improváveis."
Ariandel riu — o som era contagiante, quase musical.
"Podemos confirmar sobre as 'situações improváveis'."
Cássia, inclinando ligeiramente a cabeça, acrescentou com um sorriso tímido:
"Sim, ele está dizendo a verdade. Não que alguém tenha questionado isso…"
Sunless arqueou uma sobrancelha, intrigado.
"Como você sabe?"
"Minha Habilidade", explicou ela com simplicidade, "é que consigo "ver" os Atributos das pessoas. Também recebo visões de vez em quando."
Ele manteve o rosto impassível, mas, por dentro, sentiu um arrepio.
'Ótimo, uma espécie de oráculo. Maravilha… mais um tipo de pessoa para eu ter cuidado com o meu segredo.'
"Interessante", respondeu Sunless casualmente, antes de continuar:
"Agora, minha Habilidade: minha sombra pode se mover sozinha. Ela explora e me passa o que vê e ouve. É ágil, furtiva, quase impossível de ser detectada. Ah, e posso enxergar no escuro."
Nephis o observava com atenção calculada, sem dar qualquer pista de seus pensamentos. Cássia, por sua vez, parecia mais à vontade, embora ainda reservada.
Já Ariandel, tomou a palavra de maneira descontraída:
"Meus Atributos me conferem alta afinidade com o destino e o divino, aprimoram minha acuidade mental e fortalecem minha resiliência."
Ele manteve uma breve pausa, escolhendo as palavras.
"Meu Aspecto me permite manifestar ilusões – algumas tangíveis, outras não – e me tornar praticamente invisível à percepção humana. Além disso, não possuo necessidade de sustento e tenho um sexto sentido que me permite perceber presenças próximas."
'É isso! O bastardo-florido é o favorito do Feitiço... Que tipo de insanidade é essa?!' O estômago de Sunless revirou.
"Quanto às Memórias", continuou Ariandel, sem dar sinais de perceber a tensão de Sunless, "um arco que forma suas próprias flechas."
Cássia sorriu para ele, claramente à vontade em sua presença.
Nephis, por outro lado, manteve-se impassível, observando Ariandel com renovado interesse.
Como era a sua vez, ela declarou de forma prática:
"Meus Atributos me dão afinidade com luz e fogo. Também possuo uma conexão com o divino."
Manteve uma pausa breve, quase imperceptível, antes de acrescentar:
"Tenho duas Memórias: uma espada afilada que protege contra ataques à alma e uma armadura com um forte encantamento defensivo."
Seus olhos percorreram o grupo por um instante, tentando perceber algo através da escuridão, antes de completar, com a mesma praticidade:
"Minha Habilidade pode ser usada para curar."
Sunless a observou em silêncio, percebendo como suas palavras eram cuidadosamente escolhidas, revelando apenas o essencial. Não sabia se essa era apenas uma questão de reserva ou se havia algo mais que ela preferia esconder.
No entanto, antes que pudesse digerir totalmente suas palavras, Cássia pigarreou educadamente.
"É minha vez? Meus Atributos me dão afinidade com revelações e destino."
Sua voz era um pouco suave.
"Minha habilidade é limitada, como mencionei antes. Quanto às Memórias, tenho três: um bastão que pode criar vento, a garrafa e esta armadura desperta, que oculta minha presença."
Ela hesitou e, quase imperceptivelmente, virou o rosto na direção de onde sentia a presença de Ariandel.
"Aria emprestou para mim, quando nos encontramos."
Sunless arqueou uma sobrancelha.
'Ele entregou uma armadura desperta para a cega... Que generoso, hein...'
"..."
"..."
"..."
"Bom. Eu acho que esses são meios suficientes para nos mantermos vivos", comentou Sunless.
Ariandel assentiu, mantendo ainda aquele sorriso gentil e educado.
"De fato. Embora também seja preciso algum tempo até estarmos em sintonia."
Nephis permaneceu em silêncio por um instante antes de finalmente se manifestar:
"Eu fico de vigia primeiro."
Sunless, querendo demonstrar utilidade, disse:
"Minha sombra pode nos avisar se algo acontecer. Ela não dorme."
Nephis respondeu com um sorriso leve, quase zombeteiro.
"Ainda assim, prefiro fazer isso."
Sunless suspirou, mas não insistiu.
'Como quiser. Só espero que saiba o que está fazendo. Não quero acabar sendo mordido por alguma aberração no meio da noite.'
E então, de repente, ele estremeceu.
'Espera... isso não foi uma bandeira de morte, certo? Certo? Não... Claro que não...'
***
O sono escapava de Sunless. Sentado na escuridão, ele ouvia o murmúrio distante das ondas quebrando nos corais.
O frescor do ar noturno fazia sua mente vaguear pelas memórias recentes e pelos rostos que agora o acompanhavam. Ele estava vivo, quente e, por enquanto, seguro. Isso era mais do que podia esperar.
À distância, Ariandel estava elegantemente inclinado em uma cadeira aparentemente confortável demais para o cenário.
Sunless agora entendia de onde saiu algo tão ultrajante.
'Besteira.'
Cássia estava deitada mais distante; logo, o ritmo de sua respiração mudou, indicando que ela havia adormecido.
Do outro lado do acampamento, Nephis estava em vigília, com os olhos cinzentos voltados para a escuridão, mas alheia à eles. Sunless sabia que ela ainda estaria ouvindo; nada escapava à sua atenção.
O silêncio entre ele e Ariandel se estendeu até que Sunless cedeu. Ele falou em voz baixa, sua própria sombra pairando em alerta ao seu lado.
"Então, você está se sobrecarregando com Cássia. Por quê?"
Ariandel moveu seus preciosos olhos em sua direção, sem surpresa com a pergunta direta.
Então, ele soltou uma risadinha — seus belo rosto, de traços suaves e decididos, divertido com alguma ironia que só ele reconhecia.
"Porque eu quero."
A simplicidade de sua resposta foi quase desarmante, e Sunless estreitou os olhos, não convencido.
"Sério? É só isso? Não porque achou que ela seria útil ou alguma coisa assim?"
A gentileza de Ariandel permaneceu, mas o tom em sua resposta carregava uma convicção velada:
"Não. Ainda que eu veja potencial no Aspecto dela, é secundário. Ela precisava de ajuda, eu podia oferecer. Então, ajudei."
Sunless sentiu o já familiar incômodo brotar, provocado pelo abismo entre suas perspectivas.
Ele tentou conter o cinismo natural, mas a resposta ácida escapou antes que pudesse evitar:
"Esse tipo de ingenuidade vai acabar te matando, sabia?"
O sorriso de Ariandel se alargou.
"Talvez."
Os padrões em seus olhos cintilaram sutilmente.
"Mas, essa mesma "ingenuidade"; me dá força."
Depois disso, ele se virou e recostou a cabeça. Repousando silenciosamente sob o céu sem estrelas.
Parecia que a conversa deles havia terminado.
Resmungando internamente, Sunless se deitou e tentou dormir.
Algo no tom de Ariandel parecia profundamente genuíno, mas ainda assim, Sunless não confiava nele completamente. O jovem era um mistério, e mistérios, no Reino dos Sonhos, podiam ser perigosos.
'Não é ciúmes... é apenas... precaução!'
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