Natalya segurava a tábua com uma expressão de tédio nos olhos. Girava-a nas mãos, analisando cada detalhe com olhos experientes, mas o brilho de descoberta, tão comum em suas expedições, estava ausente. A superfície da tábua, repleta de entalhes e símbolos desgastados, nada mais era do que um lembrete frustrante do fracasso daquela jornada. Nenhum segredo oculto, nenhuma promessa de um novo tesouro ou revelação. Apenas mais uma relíquia inútil em um vasto mar de falsos achados.
— Típico lixo… — resmungou, jogando a tábua dentro da mochila com um gesto brusco e um suspiro pesado.
— Tão ruim assim? — perguntou uma voz metálica que vinha do seu lado, cortante e fria, uma voz que soava mais como o ranger de engrenagens do que como palavras humanas.
Natalya ignorou a pergunta por um instante, como se estivesse acima de responder a algo tão óbvio. Suas mãos vagaram até um cigarro no bolso de seu casaco, que ela acendeu com a mesma despreocupação habitual, tragando longamente antes de soltar a fumaça no ar pesado da sala. O brilho alaranjado da ponta do bastão de nicotina iluminou brevemente suas feições endurecidas, e após mais alguns segundos, resmungou com desdém.
— Abaixo do esperado. Não valeu o esforço.
A sala ao redor era um cenário de caos e morte. Criaturas deformadas e grotescas jaziam pelo chão em ângulos impossíveis, como se suas mortes tivessem sido tão violentas quanto suas existências.
Sangue escuro, quase negro, pingava das lâminas da Colecionadora e de seu companheiro, formando pequenos riachos que se misturavam ao mofo e à umidade impregnada nas pedras antigas do local. O cheiro metálico do sangue, junto com a terra úmida, dominava o ar, uma constante em suas expedições.
Natalya passou a mão pelos cabelos bagunçados, manchando ainda mais os fios já sujos com sangue seco. Seu olhar estava distante, sem emoção, como se aquela carnificina fosse apenas uma rotina entediante.
— Vamos voltar para a cidade. Talvez tenham descoberto alguma nova ruína para verificarmos. Não quero perder mais tempo aqui.
Com um movimento despreocupado, jogou a caixa de cigarros para seu companheiro. O homem pegou o item no ar, mas, com um movimento tão rápido e desinteressado quanto o da mulher, jogou de volta.
— Já disse que não tenho interesse em ter câncer. Obrigado.
— Que porra de pulmão você tem para ter medo de câncer? — zombou, soprando a fumaça para o lado, rindo de leve enquanto voltava a tragar.
O companheiro emitiu um som que poderia ser interpretado como uma risada, um ruído arranhado e artificial.
— Ainda assim, não vou arriscar.
Natalya o encarou por um momento. Ele era uma combinação grotesca de carne e metal, resultado de inúmeras batalhas e reconstituições, às vezes, propositais. Grande parte de seu corpo original já havia sido substituída por peças metálicas, próteses avançadas que mais pareciam saídas de uma fábrica do que de um ser vivo.
Por fim, a Colecionadora deu de ombros, aceitando o cigarro de volta e se preparando para guardar novamente dentro da roupa, quando, de repente, um tremor repentino percorreu seu corpo. Falhou ao tentar guardar a caixa, derrubando-a no chão com um baque surdo. Ela levou ambas as mãos às têmporas, apertando-as com força, como se estivesse tentando esmagar a dor que pulsava em sua cabeça.
— Merda, merda, merda! — rugiu, curvando-se no chão, o rosto perdendo a cor, os olhos cerrados em agonia.
— O que foi?
— A porcaria das vozes! — gritou, sua voz tomada de raiva. — Faz meses que sumiram, e agora voltam com tudo! Essas desgraçadas deveriam ser mais gentis…
Ela respirou fundo, tentando recobrar o controle. Apesar de dolorosas, eram uma presença familiar. Cada vez que surgiam, traziam consigo a promessa de grandes descobertas. Natalya sentia um misto de exasperação e expectativa. A dor era brutal, mas sempre carregava consigo uma excitação indescritível. O companheiro a observava de maneira inexpressiva, esperando.
— Você deveria procurar um médico. Ouvir vozes não é normal.
Natalya soltou uma risada curta e amarga, um som seco em meio à dor, mas com uma ponta de sarcasmo.
— As coisas boas da minha coleção sempre vieram das vozes... — murmurou, como se estivesse tentando convencer a si mesma. Ela respirou fundo mais uma vez e completou com a voz falha. — E dessa vez, parece que tiramos a sorte grande. Sete apontamentos de uma vez, todos no mesmo lugar… isso é novo.
Ainda trêmula, afastou uma mão da cabeça e ajustou seus óculos no rosto. O brilho das lentes refletiu por um breve momento a luz da tocha improvisada que prenderam na parede, enquanto seus dedos tocavam nos pequenos controles localizados na lateral da armação.
— Busque as coordenadas -23.515402, -46.851100.
O silêncio que seguiu foi tão intenso que o som de sua respiração, aos poucos voltando ao normal, ecoou pelo ambiente. Por um momento, tudo parecia suspenso no tempo, até que uma voz suave e impessoal a respondeu.
— Busca finalizada.
Diante de seu olho direito, um mapa tridimensional surgiu, flutuando através da interface de seus óculos. Linhas de topografia, contornos detalhados, e símbolos informativos começaram a se formar, todos levando a um ponto marcado com precisão nas profundezas de um local familiar.
A Colecionadora analisou as informações com um sorriso que se formava lentamente em seus lábios. As coordenadas não mentiam. Aquilo não era apenas um novo achado.
— Olha só... parece que vamos visitar velhos conhecidos
Ela se levantou, ignorando a dor que ainda latejava em sua cabeça, e olhou para o mapa com renovado interesse. As coordenadas levavam a um local que ela conhecia muito bem.
Ela se levantou, ignorando a dor que ainda latejava em sua cabeça, ajustou o casaco e puxou a mochila para cima, a arrumando sobre os ombros. O companheiro metálico a observava em silêncio, sem fazer perguntas. Ele sabia que, no final, as respostas sempre vinham quando Natalya decidia revelá-las. Até lá, ele seguiria em frente, como sempre fazia.
— Vamos nos preparar. A estrada vai ser longa.
— Iremos por terra?
— É claro que não — respondeu a mulher.
Ela soltou a última baforada do cigarro que ainda segurava e o jogou no chão de pedra, esmagando-o com a bota. O som do papel e tabaco sendo pisoteados ecoou pelo ambiente sombrio, um ruído insignificante diante da vastidão do local.
Os dois começaram a se mover em direção à saída da sala, atravessando o mar de cadáveres sem se importar com o sangue que se agarrava às solas de seus pés. O caminho pelas ruínas era estreito, com paredes recobertas de limo e rachaduras que deixavam o som do vento se infiltrar, como um lamento distante.
À medida que avançavam, o chão tremeu brevemente sob seus pés, sugerindo que as velhas estruturas lutavam para se manter intactas, como se o peso da história estivesse prestes a colapsar.
— Você acha que essa tábua realmente não significa nada? — a voz metálica do companheiro cortou o silêncio. — Estava guardada fundo demais para ser só algo inútil.
Natalya fez uma pausa breve, o olhar distante enquanto ponderava. Seus dedos tocaram a borda de sua mochila, onde a tábua repousava.
— Pode ser só uma pedra velha — respondeu ela com um tom desinteressado. — Ou pode ser a chave para algo que ninguém jamais pensou em procurar. Se não me der uma resposta, vai para o depósito como qualquer outra coisa.
Horas depois, a luz fraca do sol de fim de tarde os recebeu à medida que emergiam das ruínas. O calor do deserto os envolveu como uma onda de nostalgia, uma sensação estranhamente familiar após tantos dias no subterrâneo.
— A volta é sempre mais rápida — comentou o homem. — Acho que começo a entender sua motivação. É realmente satisfatório visitar esses lugares abandonados.
Natalya lançou-lhe um olhar de lado, os lábios se curvando em um sorriso seco.
— Você está falador hoje, hein?
— Talvez porque você está respondendo mais do que o normal — respondeu ele, com um toque de ironia. — Mas estou certo? Ou você só está atrás de algo que não seja apenas "lixo"?
Natalya manteve o olhar fixo no horizonte enquanto suas botas afundavam levemente na areia macia. Seus dedos brincaram com um estranho pingente preso na ponta de uma de suas tranças, e ela logo mudou o olhar para o céu enquanto inspirava o ar seco e quente.
— Faço isso porque ainda não encontrei nada que seja… o suficiente.
Sua voz, embora firme, carregava uma sombra de melancolia que raramente deixava escapar.
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